Cena do filme "Lutero", dir. Eric Till (Alemanha, 2003)
À primeira vista, a Reforma parece ter renovado a ênfase medieval no outro mundo e invertido a tendência ao secularismo que se registrara na Renascença. Atraídos pela antiga doutrina estóica da vontade autônoma, os humanistas da Renascença haviam rompido com a rígida visão de Agostinho do pecado original - uma natureza humana corrupta e a incapacidade do indivíduo de alcançar a salvação mediante seus próprios esforços. Lutero e Calvino, no entanto, viam os seres humanos como essencialmente depravados e corruptos e rejeitavam por completo a noção de que os indivíduos pudessem fazer algo por sua própria salvação; tal afirmação da vontade humana, sustentavam eles, revelava uma perigosa presunção nos seres humanos.
Mas a Reforma contribuiu, em muitos aspectos importantes, para a formação da modernidade. Ao dividir a cristandade em católica e protestante, destruiu a unidade religiosa da Europa, a principal característica da Idade Média, e enfraqueceu a Igreja, principal instituição da sociedade medieval. Fortalecendo o poder dos monarcas às expensas dos órgãos religiosos, a Reforma estimulou o crescimento do Estado moderno, secular e centralizado. Os governantes protestantes repudiaram totalmente a pretensão do papa à autoridade temporal e estenderam seu poder sobre os protestantes recém-estabelecidos em seus países. Nas terras católicas, a Igreja, enfraquecida, relutava em desafiar os monarcas, cujo apoio ela agora necessitava mais do que nunca. Essa subordinação da autoridade clerical ao trono permitiu que os reis construíssem Estados centralizados fortes, um atributo da vida política do Ocidente moderno.
Embora a monarquia absoluta tenha sido o beneficiário imediato da Reforma, o protestantismo contribuiu indiretamente para o crescimento da liberdade política - outra característica do Ocidente moderno. Com certeza, nem Lutero nem Calvino defendiam a liberdade política. Para Lutero, um bom cristão era um súdito obediente. Assim, segundo ele, os súditos deviam obedecer às ordens de seus governantes. [...] Os calvinistas criaram em Genebra uma teocracia que regulava de perto a vida privada dos cidadãos, e Calvino condenava veementemente a resistência à autoridade política como iníqua. Sustentava que os governantes eram escolhidos por Deus e que a punição dos maus governantes cabia somente a Deus e não aos súditos.
Não obstante, a Reforma propiciou também uma base para se desafiar o poder dos monarcas. Alguns teóricos protestantes, sobretudo calvinistas, apoiavam a resistência às autoridades políticas cujos editos, na opinião deles, violassem a lei de Deus tal como expressa na Bíblia. A justificativa religiosa para a rebelião contra governos tirânicos estimulou nos calvinistas ingleses, ou puritanos. a resistência à monarquia no século XVII.
A Reforma promoveu a ideia da igualdade, que tem raízes na crença judaico-cristã de que as pessoas são todas criaturas de um único Deus. Em dois aspectos importantes, contudo, a sociedade medieval infringia o princípio da igualdade. Em primeiro lugar, o feudalismo reforçava as distinções hereditárias entre nobres e plebeus. A sociedade era hierárquica [...]. Em segundo, a Igreja medieval ensinava que somente os clérigos podiam ministrar os sacramentos, que era o meio pelo qual as pessoas podiam alcançar a salvação [...]; Lutero, por sua vez, afirmava que não havia distinção espiritual entre os leigos e o clero. Todos os crentes eram iguais em espírito [...].
A Reforma contribuiu também para a criação da ética individualista que caracteriza o mundo moderno. Uma vez que os protestantes, ao contrário dos católicos, não tinham nenhum intérprete oficial das Escrituras, ficava a cargo do indivíduo a terrível responsabilidade de interpretar a Bíblia de acordo com os ditames de sua consciência. Nenhuma igreja lhes fornecia segurança ou certeza, e nenhum clero interferia em sua relação com Deus. [...]
Para o protestante, a fé era pessoal e intrínseca. Essa nova ordem demandava uma relação pessoal entre cada indivíduo e Deus e chamava a atenção para as inerentes capacidades religiosas do indivíduo. Certos de que Deus os escolhera para a salvação, muitos protestantes desenvolveram a autoconfiança e segurança que distinguem o indivíduo moderno. [...]
Ao ressaltar a consciência individual, a Reforma pode ter contribuído para o desenvolvimento do espírito capitalista, que fundamenta a economia moderna. [...] Os homens de negócio protestantes acreditavam ter a obrigação religiosa de enriquecer, e sua fé lhes dava a autodisciplina necessária para isso. Convencidos de que a prosperidade era uma bênção de Deus e a pobreza sua maldição, os calvinistas tinham o estímulo espiritual para trabalhar com diligência e evitar a preguiça.
De acordo com a doutrina da predestinação de Calvino, Deus já determinava com antecipação quem seria salvo; nenhuma ação terrena poderia conduzir à salvação. [...] Com efeito, como argumentou Weber, o protestantismo, ao contrário do catolicismo, dava aprovação religiosa ao enriquecimento e ao modo de vida dos negociantes. [...]
PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 244-246.
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