"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 4 de novembro de 2012

Por que globalizar a cultura? [I - Pra inglês ver]

Forget not me
Of...
I love you!
Abacaxi... whisky
off chuchu...
malacacheta; independence day
no street-flesh me estrepei...
Elixir de inhame
reclame de andaime
mon Paris je t'aime
sorvete de creme...
My girl good night...
oi!
double fight.
Isso parece uma canção de Oeste
coisas horríveis lá no far west.


Coisa mais louca você acabou de ler, não lhe parece?

Verdadeira salada de palavras! Muitas em português! Muitas em inglês! E até em francês!

Esses versos absurdos são de uma música de Lamartine Babo chamada Canção para inglês ver. Composta em 1934, representava uma crítica ao crescente emprego de palavras e expressões estrangeiras no falar do brasileiro.

Era uma denúncia à penetração de uma cultura vinda de fora que superava cada vez mais nossos valores culturais.

O linguajar do brasileiro foi mudando, sendo os filmes feitos em Hollywood um dos meios que contribuíram para essas mudanças.

Noel Rosa, talentoso compositor e observador dos costumes de sua época, registrava a mania do brasileiro de falar inglês por influência do cinema. Assim foi no samba "Não tem tradução", que é de 1933.

O cinema falado
É o grande culpado da transformação
[...] A gíria que o nosso morro criou
Bem cedo a cidade aceitou e usou.
Mais tarde o malandro deixou de sambar
Dando pinote
E só querendo dançar o fox-trot!

Como verdadeira pororoca, as palavras inglesas invadiram o nosso Brasil, que muitos já escrevem Brazil! E essa invasão de palavras foi paralela à invasão do capitalismo norte-americano! [...]

Atualmente ninguém mais pede lâmina de barbear! Tudo é gilete, marca de produto norte-americano. Máquina de costura virou singer. Corretor agora é liquid paper!

O antigo rabo-de-galo se americanizou e se chama cocktail. Futebol de praia se transformou em beach soccer. Não se pede uma bebida leve, mas sim um drink.

Nos dias atuais, com os progressos da tecnologia, tem aumentado o uso de palavras escritas em inglês. Muitas nem constam de dicionários. É um tal de designer, site, chip, hardware, software, on-line, hackers! Já se fala até em plugar e deletar. São duas palavras aportuguesadas do inglês plug e delete.

Com a televisão então o consumismo de produtos e palavras inglesas mais aumentou. Como aponta Júlia Falivene Alves [...]: "Certos alimentos habituais nos USA, de tanto se tornarem presentes em nossas refeições diárias, foram aos poucos adquirindo aos nossos olhos ares de verdadeiras 'instituições nacionais', comparáveis até ao feijão com arroz e ao café com leite. O consumo de Coca-Cola e de outros refrigerantes, sucos artificiais, catchup, milk-shake, sundaes e outros comes e bebes desse gênero já passou a fazer parte da 'rotina digestiva' de milhões de brasileiros, sobretudo dos que vivem no eixo centro-sul do país."

E tem mais americanice nos bang bang, bad boy, playboy, jeans, beer, disk jockey, care free, long play, compact disk ou CD.

Você liga o rádio e quase que só ouve música norte-americana: rock' n' roll, bebop, jazz, blues, soul, funk, swing. [...]


Elvis Presley, anos 1950


Uma das razões está no fato de as gravadoras serem multinacionais, predominantemente norte-americanas: EMI, Capitol, RCA Victor, CBS, Philips, WEA...

O mais grave é que são tornadas populares músicas que apelam para o breganejo e a breganagem. Nesta, se exaltam o tcham, a dança da garrafa...

[...]

Quem sabe, preocupado com o que está abrindo seus olhos, você não vai acender um cigarro? Não é mais o velho cigarrinho de palha, preparado com suas próprias mãos. Agora o cigarro-veneno que você põe à boca tem um nome estranho! Chama-se Pall Mall, Charm, Free, Hollywood, Marlboro, Carlton!

Essa penetração consumista, nem sempre visível e sempre alienante, representa uma hábil manobra do imperialismo para consolidar a dominação econômica.

Já na década de 1930, essa mundialização do americanismo no Brasil e no mundo, além do cinema falado, começava pela base da própria sociedade: as crianças!

Como pôde isso ocorrer?

Através de histórias em quadrinhos! Nestas, os super-heróis eram identificados com o bem, a justiça, a coragem, a proteção aos mais fracos, o combate ao crime.

E, não por acaso, na sua imensa maioria, esses personagens eram nascidos nos Estados Unidos. [...] Popeye, Batman, Super-Homem, Capitão Marvel, Mandrake, Capitão América eram norte-americanos.

[...]

Você deve estar pensando que havia histórias em quadrinhos bem diferentes. Sem propaganda camuflada. Logo se lembra do Pato Donald, do Mickey, do Tio Patinhas...

Pois bem, esses personagens foram criados por Walt Disney. Este trabalhou para o governo dos Estados Unidos! Suas historinhas não são inocentes! O Tio Patinhas, com seu amor ao dinheiro, no fundo, exalta o capitalismo. Já o Mickey é todo certinho e amigo do chefe de polícia. Identifica-se com a ordem existente e a necessidade de buscar apoio das autoridades. O Pato Donald, solteiro e namorado da Margarida, tem três sobrinhos de pais que nunca apareceram. Parece até que nasceram por geração espontânea, sem relacionamento sexual.

[...]

Em um desenho animado chamado O rei leão pelos estúdios Walt Disney, o leão bom tem pêlo claro. O mau, tem juba negra e pêlo escuro. Seus amigos são hienas, também escuras. E nós, adultos e crianças, achando que desenho animado é coisa inocente!

Antes era o cinema. Isso aumentou com a televisão e o vídeo. Nos programas, nos filmes e até nos desenhos animados. Os Simpsons e os Flinstones são famílias norte-americanas. Passam os valores da sociedade norte-americana. E que valores! Basta ver quanta violência nos filmes! Melhor ainda: reparem a quantidade de filmes norte-americanos mostrados em nossas emissoras de televisão. Ou à disposição em vídeo.

E fica a pergunta no ar: mundialização, globalização da cultura não constituem uma subordinação aos Estados Unidos?

A sociedade brasileira está cada vez mais mcdonaldizada! Qualquer dia, na marcha de aceleramento americanizado, o campo, o sertão, a floresta terão McDonald's para vender hamburger, cheeseburger, McFish, McChicken, com Coca-Cola!

Para Júlia Falivene Alves, "essa espécie de 'segunda pele' que nós brasileiros vestimos tem tornado cada vez mais difícil a procura, a determinação, o reencontro ou a elaboração da nossa própria identidade cultural". [...]

Até que ponto continuaremos a consumir falas, maneiras de vestir, hábitos alimentares, a agir como se norte-americanos fôssemos?

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. Brasil: uma história popular. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 157-164.

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