A nave Enterpreise do filme Jornada nas Estrelas
A arqueologia era uma ciência imprecisa nos tempos remotos.
Os estudiosos dos séculos XX e XXI enfrentavam dificuldades intransponíveis que
embaralhavam a mente e ofuscavam o entendimento do que se queria conhecer. Os
pedaços desconexos das descobertas independentes, um crânio, uma peça de
cerâmica, a parte de uma tíbia, os escombros de uma pirâmide, levaram os
arqueólogos a construir fantasias descabidas sobre a origem da linguagem, do
Homo Sapiens, e até mesmo, de seu modo de vida. Cada nova descoberta,
geralmente resultado de uma escavação qualquer, questionava as informações
anteriores, deixando claro que as explicações vigentes eram incompletas e
inconsistentes. Escrevendo-se hoje, a partir do futuro, é motivo de orgulho
observar que tais contradições desapareceram graças aos avanços tecnológicos.
Indubitavelmente, possuímos atualmente a capacidade de descrever o passado de
maneira clara e precisa. Os métodos existentes de datação, o acúmulo de dados
arquivados, textos, imagens, poeira cósmica, permitem a elaboração de um
retrato perfeito das eras imemoriais.
As escavações realizadas no planeta azul - os antigos o
denominavam Terra - trazem à tona um material inédito: garrafas de coca-cola
(tipo de infusão ingerida pelos indígenas) encontradas na China, restos de
alimentos provenientes do consumo inadequado da carne (discute-se se a grafia
correta da sua origem seria mac’s, mcdonald’s ou macdonalds), textos
publicitários de países distintos, asiáticos e europeus, sobras de filmes
produzidos num local estranho, Holly Wood (provavelmente um bosque sagrado),
todos esses vestígios não deixam margem a dúvidas. Os povos ancestrais falavam
uma única língua. Esta é uma constatação que pode ser inclusive validada pelos
textos bíblicos (espécie de livro em papel, ingenuamente considerado como
manifestação da vontade divina), nos quais apenas um idioma era utilizado pelos
homens, quando viviam no Paraíso. A queda da humanidade, que culminou no
episódio de Babel, havia introduzido uma proliferação nefasta de línguas que,
ao que parece, felizmente se extinguiram no período histórico que estamos
considerando.
O mundo desta época era também harmonioso e sem conflitos.
Como as pessoas falavam o mesmo idioma a incompreensão era desconhecida. Todos
podiam conversar uns com os outros, eliminando-se a possibilidade de
mal-entendidos e comunicações truncadas. Além disso, os textos dos quais
dispomos, indicam que após uma guerra imensa, culminando com a invasão de um
país denominado Iraque, todas as nações se uniram para preservar o bem comum do
planeta. Como apenas um desses países possuía um grande arsenal nuclear (os
Estados Unidos), com armas potentes e inteligentes (e as ruínas são a prova
irrefutável deste estado de coisas), parece-nos correto inferir que não seria
conveniente guerrear neste quadro tão desigual de forças adversas. Seria inútil
e insensato desafiar tal perigo. A paz foi então mantida durante séculos num
ambiente de concórdia e conforto.
Discute-se se as sociedades passadas conheciam ou não a
desigualdade econômica e social. Os vestígios existentes não nos permitem dizer
com certeza o que se passou. Tudo indica, pelos artefatos coletados, edifícios
de mais de quarenta andares, caraças de automóveis, aviões e trens de rápida
velocidade, suportes tecnológicos altamente sofisticados, computadores,
telefones sem fio, satélites, de que se tratava de um momento de fartura. Os
homens dessas sociedades conheciam técnicas de plantio capaz de eliminar
definitivamente a fome de todo o planeta e possuíam meios de comunicação
efetivos para circundá-lo por terra, mar e ar. Seria, pois, altamente
improvável a existência da pobreza e do abandono, inclusive porque os avanços
da biogenética eram já consideráveis, prolongando a vida dos habitantes desses
lugares.
Diz-se que o conhecimento do passado pouco nos esclarece
sobre o futuro. Mas quando esta Academia de Lagado debruça-se sobre as
longínquas populações terráqueas, não sem uma ponta de nostalgia, vislumbramos
tempos bem melhores. Inteiramente distinto de nossa condição desesperada na
qual o ar é rarefeito e a fome e a miséria uma presença inelutável. Já não
vivemos como nossos antepassados, algo perdemos de sua sabedoria e
discernimento quando viemos habitar outros confins da galáxia.
Renato Ortiz, sociólogo
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