"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Entre a cruz (religião) e a espada (guerra): a conquista da América pelos europeus

Funeral de Atahualpa, Luis Montero

DOCUMENTO 1
A cruz realizou um trabalho complementar à espada. Um conjunto de circunstâncias de ordem religiosa entre algumas nações indígenas facilitou a tarefa dos dominadores, já que tanto no México como no Peru uma série de profecias e sinais asseguravam a chegada iminente de novos deuses. E os europeus, manipulando o imaginário destes povos, não tiveram dúvidas em se apresentar como tais. O domínio do sagrado sobre o profano se materializou até nas construções das igrejas católicas, ao se aproveitar algumas pirâmides e templos como alicerces para a edificação de suas catedrais. [...]

Juan de Zumáraga, primeiro arcebispo do México, se orgulhava, em uma carta de 1547, de que seus sacerdotes haviam destruído até então mais de 500 templos indígenas e queimado cerca de 2 mil ídolos. Ele próprio ajudou a incinerar os arquivos existentes em Texcoco. O mesmo fez o bispo de Yacatán, Diego de Landa, ao atirar ao fogo purificador os manuscritos maias - único povo da América pré-colombiana que havia criado uma escrita -, fazendo com que se destruíssem os principais documentos históricos e literários. [RAMPINELLI, Waldir José. A falácia do V Centenário. In: ________. OURIQUES, Nildo Domingos (Org.). Os 500 anos: a conquista interminável. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 30-31.]

A tortura de Cuauhtémoc, Leandro Izaguirre

DOCUMENTO 2
O Almirante Colombo encontrou, quando descobriu esta ilha Hispaniola, um milhão de índios e índias [...] dos quais, e dos quais nasceram desde então, não creio que estejam vivos, no presente ano de 1535, 500, incluindo tanto crianças como adultos, que sejam naturais, legítimos e da raça dos primeiros índios [...]. Alguns fizeram esses índios trabalhar excessivamente. Outros não lhes deram nada para comer como bem lhes convinha. Além disso, as pessoas desta região são naturalmente inúteis, corruptas, de pouco trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má condição, mentirosas, sem constância e firmeza [...]. Vários índios, por prazer e passatempo, deixaram-se morrer com veneno para não trabalhar. Outros se enforcaram pelas próprias mãos. E quanto aos outros, tais doenças os atingiram que em pouco tempo morreram [...]. Quanto a mim, eu acreditaria que Nosso Senhor permitiu, devido aos grandes, enormes e abomináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e animalescas, que fossem eliminadas e banidas da superfície terrestre [...]. [OVIEDO, Gonzalo Fernandes de. In: ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da conquista colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 76.]

Cortez e seus soldados lutando contra os astecas em Tenochtitlán, Emanuel Leutze

DOCUMENTO 3
O relato desse primeiro encontro com Atahualpa foi feito por diversas testemunhas oculares [...]. Por meio de seu testemunho, a cena aparece para nós, hoje, como um confronto entre duas visões incompatíveis do mundo: de um lado, a de um soberano para quem a própria natureza do poder que encarna proíbe a comunicação direta com seus súditos e o recurso a mediadores; do outro, a de dois hidalgos espanhóis, Soto e Hernando Pizarro, para os quais os reis são interlocutores diretos a despeito de sua majestade. Quebrando sistematicamente as barreiras rituais que os separam do Inca, apagando os códigos de polidez e de hierarquia, os conquistadores vão marcar uma primeira vitória sobre um homem fechado em sua dignidade solar. Pois, mais do que as armas, são os gestos e as palavras que vão solapar a solenidade do Filho do Deus Sol, anunciando o fim de império do qual o Inca era a chave-mestra. [...] [BERNAND, Carmem; GRUZINSKY, Serge. História do Novo Mundo: da descoberta à conquista, uma experiência europeia (1492-1550). São Paulo: Edusp, 1997. p. 499-500.]

Entrada dos espanhóis em Guadalajara, Jalisco. Forças tlalcaxtecas acompanham os espanhóis liderados por Cristóbal de Olid, 1522. Escriba asteca desconhecido.

DOCUMENTO 4
A atitude de Colombo para com os índios decorre da percepção que tem deles. Podemos distinguir, nesta última, duas componentes, que continuarão presentes até o século seguinte e, praticamente, até os nossos dias, em todo o colonizador diante do colonizado. Estas duas atitudes já tinham sido observadas na relação de Colombo com a língua do outro. Ou ele pensa que os índios (apesar de não utilizar estes termos) são seres completamente humanos com os mesmos direitos que ele, e aí considera-os não somente iguais, mas idênticos e este comportamento desemboca no assimilacionismo, na projeção de seus próprios valores sobre os outros ou então parte da diferença, que é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente, são os índios inferiores): recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. Estas duas figuras básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu eu como o universo; na convicção de que o mundo é um. [TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 51.]

A batalha de Otumba, Artista desconhecido

DOCUMENTO 5
Essa trilogia - doenças, desunião dos indígenas e o aço espanhol - responde por boa parte do resultado da Conquista. Basta remover um de seus elementos para que a probabilidade de fracasso das expedições lideradas por Cortés, Pizarro e outros fique muito alta [...].

Um quarto fator também desempenhou um papel importante: a cultura bélica. Por exemplo, os astecas foram prejudicados por certas convenções de batalha ignoradas pelos hispânicos. Os métodos de guerra astecas salientavam a observação de cerimônias que antecediam as batalhas - que eliminavam a possibilidade de ataques de surpresa - e a captura de inimigos para posterior execução ritual, em vez de matá-los no ato [...]. Por fim, a Conquista espanhola só pode ser plenamente compreendida se situada no contexto histórico mais amplo da expansão ultramarina. Essa história mais ampla não fala de uma superioridade espanhola, ou mesmo da Europa Ocidental, mas aborda, ao contrário, um complexo fenômeno da história mundial que transcende as peculiaridades da Conquista espanhola das Américas [...]. [RESTALL, Mattew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 240-242.]

A captura de Atahualpa, Juan Lepiani


DOCUMENTO 6
[...] Vieram os Dzules* que transformaram tudo. Eles ensinaram o terror, eles secaram as flores, sugando até ferir a flor dos outros para poderem fazer sobreviver a própria... Não havia entre eles nem grande sabedoria, nem palavras, nem ensinamentos. Os Dzules não vieram senão para mutilar o sol! E os filhos de seus filhos permaneceram entre nós, que deles não recebemos senão amargura. [ANÔNIMO. Chilam Balam de Chumayel. In: GENOROP, Paul. A civilização maia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 103.]

* Conquistadores espanhóis.

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