"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O legado da Índia

Carregadoras de água no Ganges, Edwin Lord Weeks

A Índia foi, na Antiguidade e em épocas posteriores, uma fecunda encruzilhada de civilizações, um centro de intensa irradiação de ideias filosóficas e religiosas. [...] A Índia, pois, não só recebeu como também transmitiu influências culturais. [...]

O intercâmbio cultural entre o Vale do Indo e as velhas civilizações da Mesopotâmia já foi mencionado. Intercâmbio semelhante existiu com o império dos aquemênidas; essas relações com o Ocidente se intensificaram na época helenística. Escavações recentes efetuadas nas proximidades de Pondichéry atestam, de modo eloqüente, as ligações entre a Índia e o Império Romano. Ptolomeu fala-nos desses portos que se escalonavam do Mediterrâneo à China e os historiadores chineses informam-nos das visitas de embaixadores romanos à corte imperial, na época do Antonino Pio e de Marco Aurélio. Moedas romanas do tempo dos Antoninos, encomendadas no Oriente, confirmam esse intercâmbio que não terá sido exclusivamente comercial.

Os contatos da Índia com o Oriente foram igualmente intensos: a Ásia Central, a China, a Indochina, a Indonésia e o longínquo Japão sofreram a influência da cultura indiana. A expansão do budismo ilustra essa influência sobre a Ásia Oriental: a religião de Buda difundiu-se na China, na Coréia e no Japão. Ruínas grandiosas de santuários bramânicos e budistas falam eloquentemente do prestígio cultural da Índia em Java.

No terreno artístico, a Índia também irradiou sua influência no Oriente. Assim, por exemplo, “a arte greco-budista se propaga, de uma parte através da Ásia Central para a China e o Japão, de outra parte, na Índia e além, através da rota marítima, pela Insulíndia e a Indochina”.

No que tange a influência científica, registremos que da literatura científica da Índia dependem em sua maior parte as obras congêneres da Alta Ásia Antiga, do Tibet, da Mongólia, da Birmânia, Tailândia, Laos, Cambodge e Indonésia. “Estudada em si mesma e traduzida ou continuada em outras línguas, a literatura científica sânscrita desempenhou na Ásia Oriental o mesmo papel que na Europa e na Ásia Ocidental a literatura científica grega traduzida, imitada ou prolongada em siríaco ou em árabe”. Se, agora, voltarmo-nos para o Ocidente, surge uma interrogação: até que ponto teria a Índia influído na cultura da nossa Antiguidade Clássica? No terreno científico, parece inegável essa influência: “A comunicação de ideias indianas a certos meios médicos gregos da época da Coleção hipocrática e de Platão é atestada pela menção, no tratado “Das doenças das mulheres”, de um medicamento indiano, a pimenta, e de receitas médicas indianas”. Admitia-se desde a época de Aristóteles que, mesmo antes da expedição de Alexandre, intelectuais indianos teriam vindo à Grécia. Aristóxenes de Tarento, discípulo de Aristóteles, cita uma anedota em que aparece um sábio indiano visitando Sócrates.

Quanto às elucubrações filosóficas, é possível delinear-se um paralelo entre certos pontos do pensamento indiano e do pensamento grego. Mas, entre as especulações helênicas e as meditações indianas, existem abismos intransponíveis, o que torna temerárias quaisquer afirmações sobre uma influência direta destas sobre aquelas.

E quanto ao nosso patrimônio cultural, existirá alguma contribuição direta de civilização indiana? “Não podemos atribuir à civilização indiana dádivas diretas como as que recebemos do Egito e do Oriente Próximo; porque estas civilizações foram as imediatamente ancestrais da nossa, ao passo que as histórias da Índia, China e Japão correm em outro rumo e só agora estão começando a tocar e influenciar a corrente da vida ocidental. É verdade que, mesmo através da barreira do Himalaia, a Índia nos mandou grandes presentes, como a gramática e a lógica, a filosofia e as fábulas, o hipnotismo e o xadrez, e acima de tudo o nosso sistema decimal. [...] Entre as coisas mais vitais da nossa herança oriental estão os algarismos “arábicos” e o sistema decimal, ambos vindos da Índia através da Arábia. Os algarismos erradamente chamados arábicos aparecem nos “Editos de Pedra de Ashoka (256 a.C.), precedendo de um milênio à sua aparição na literatura árabe. Disse o grande e magnânimo Laplace: Foi a Índia que nos deu o engenhoso método de representar todos os números por meio de dez símbolos, cada um deles recebendo um certo valor de posição, assim como um certo valor absoluto; profunda e importante ideia essa, e de tão simples que nos parece hoje, ignoramos-lhe o verdadeiro mérito. A sua simplicidade, a grande facilidade que imprimiu a todos os cálculos, pôs a nossa aritmética no primeiro plano das invenções úteis; e apreciaremos duplamente a grandeza de tal descoberta se refletirmos que ela escapou ao gênio de Arquimedes e Apolônio, dois dos maiores homens produzidos pela Antiguidade”.

O que há de importante no legado da Índia antiga é que, no Oriente, ele é tão vivo hoje como no passado. Porque a civilização da Índia, ao contrário do que sucedeu às velhas civilizações do Oriente Próximo, não conheceu a morte. Resistiu durante milênios e apresenta-se hoje bem viva, com todos os seus defeitos e virtudes. Assim, por exemplo, a velha literatura transmitida durante séculos pela tradição oral revela-se hoje com o mesmo vigor e pujança com que influiu outrora as massas sedentas de solução para os magnos problemas da vida. A história da Índia não terminou na Antiguidade. Não existe, na península, solução de continuidade entre os tempos de Gandhi e de Nehru e a época de Buda, Jina ou de Açoka.


GIORDANI, Mário Curtis. História da antiguidade oriental. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 397-399.

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