"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O sagrado e o profano nas origens de Roma

[...]

Os tabus e práticas de inspiração mágica surgem repetidamente na vida romana, conferindo muita importância ao campo do sagrado. Em toda a parte a religião pressupõe uma oposição entre a vida natural, ordinária e um campo dominado pelo temor e pela esperança. O sagrado é a ideia-mãe da religião, os mitos, e os dogmas analisam-lhe o conteúdo de vários modos. Os ritos utilizam-lhe as propriedades e a moralidade religiosa deriva dela. Os sacerdócios incorporam-na e os santuários, os lugares sagrados e os monumentos religiosos. fixam-na ao solo, enraízam-na. Neste sentido, a religião seria a administração do sagrado e o direito, a administração do profano. [...]

O sagrado pertence, como uma propriedade estável ou efêmera, a certas coisas como aos instrumentos de culto; pertence também a certos seres como o rei e os sacerdotes; pertence a certos espaços como templos, igrejas, bosques, lugares régios e a certos tempos como o das festas religiosas, a certos dias etc. Porém, tudo aquilo que pode ser consagrado pode também ser dessacralizado.

O objeto consagrado suscita sentimentos de pavor e veneração; apresenta-se como interdito, ou seja, aquilo de que não nos aproximamos sem morrer. O sagrado também impõe a noção de contágio, daí o cuidado de afastar de um lugar consagrado tudo o que pertence ao mundo profano. A presença de um ser profano é suficiente, nestes casos, para afastar toda uma possível bênção divina. Inúmeros exemplos poderiam ser citados neste sentido tanto entre os gregos quanto entre os romanos. Por ora basta-nos pensar no lugar dos criminosos, nas vinganças de sangue e no poder do contágio que a luta pela construção de direito dos homens tenta minimizar.

Sagrado e profano não podem se aproximar e ao mesmo tempo preservar a sua natureza própria. Por outro lado, ambos são necessários ao desenvolvimento da vida: o profano como o meio em que ela se desdobra e o sagrado, como a fonte inesgotável que a cria, que a mantém e que a renova. Estes dois mundos se definem rigorosamente um pelo outro e, ao mesmo tempo, excluem-se, supõem-se e complementam-se.

O sagrado é fonte de socorro, de todo êxito, mas também inspira terror e confiança. As calamidades e as vitórias e prosperidade são relacionadas com determinado princípio que pode ser vergado ou coagido. Desta maneira, podemos entender a história de Roma não com nosso individualismo calculista e utilitarista, mas inserida em profundas crenças que não podem ser separadas da concepção do sagrado e do profano.

Rômulo e Remo, Peter Paul Rubens

Somente Rômulo foi celebrado como o pai que trouxe os romanos à luz do dia, foi pater et genitor. Sua primazia fundou-se unicamente no auspício favorável e, por isso, de acordo com Meslin, ela pôde servir de protótipo justificativo da autoridade dos chefes políticos. Bem mais tarde, quando Otávio veria 12 abutres passarem no céu do Palatino, onde se apressaria em estabelecer-se quando enfim a paz na terra retornasse, poderia reconciliar-se o "Quirite com seu irmão Remo". O resultado mais curioso, ainda segundo Meslin, seria a piedosa iniciativa, na época agostiniana, destinada a desculpar Rômulo pela morte do irmão. Essa verdade era tão forte que o herói fundador de Roma jamais deixaria de funcionar como um arquétipo que a lenda das origens de Roma legou à meditação dos candidatos ao poder pessoal. Para além do exemplo romano, a guerra dos gêmeos como protótipo da violência está presente desde Caim e Abel, como apontou James Frazer.

Rômulo e Remo abrigados por Fáustulo, Pietro de Cortona

É também importante o que os latinos chamavam de Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. Segundo Agamben o dia do nascimento era sagrado. Os presentes e os banquetes com que festejamos o aniversário são uma lembrança da festa e dos sacrifícios que as famílias romanas ofereciam ao Genius. Originalmente só havia incenso, vinho e cucas de mel, porque Genius, o deus que preside ao nascimento, não gostava de sacrifícios sangrentos. Hoje ainda há o termo ingenium, que designa a soma de qualidades físicas e morais inatas de quem está para nascer. Genius era, de algum modo, a divinização da pessoa, o princípio que rege e exprime a sua existência inteira. Por esse motivo, nos momentos de desânimo, quando parece que quase nos esquecemos de nós mesmos, levamos a mão à cabeça. Dado que esse deus é o mais íntimo e próprio de cada um de nós, é necessário aplacá-lo e tê-lo bem favorável sob todos os aspectos e em todos os momentos da vida, Fraudar o próprio gênio é tornar triste a própria vida, ludibriar a si mesmo. Para compreendermos a diferença daquilo que nós apontamos como "eu", é significativo pensar que a concepção de homem implícita em Genius equivale a compreender que o homem não é apenas o EU com sua consciência individual, mas que, desde o nascimento, ainda segundo Agamben, até à morte, ele convive com um elemento impessoal e pré-individual. O homem é, assim, um único ser com duas faces. A vida viria da dialética entre uma parte (ainda) não identificada ou vivida e uma parte já marcada pela sorte e pela experiência individual.

Seria neste caso aquilo que os gregos e posteriormente Santo Agostinho marcariam como nossa consciência temporal, ou seja, vivemos sempre entre aquilo que já foi e aquilo que ainda não é. Há neste intervalo aquilo que podemos chamar de angústia, alegria, segurança ou temor. Enfim, é a condição humana que os antigos jamais deixaram de lado, ou seja, o ser e também o não ser sempre possível. [...]

Os romanos atribuíram a seus ancestrais a criação de sua cidade, bem, como de suas instituições sociais, jurídicas e religiosas. Quando debruçamos sobre seu passado, vemos que Roma inventou uma epopeia "nacional", criou-a incorporando nela valores cujo papel eram precisamente o de justificar ritos, costume e leis. São relatos muito humanos, pois, assim que interrogou seu próprio passado, o homem romano interessou-se mais por sua cidade, pelo êxito dos empreendimentos coletivos e por sua organização do que por uma cosmologia atemporal.

EYLER, Flávia Maria Schlee. História antiga: Grécia e Roma: a formação do Ocidente. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 163-7. (Série História Geral)

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