"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Piratas, corsários e bucaneiros nos mundos do Mediterrâneo, do Oceano Índico e do Atlântico

Piratas, Max Slevogt

[...] Todos os grandes corpos d’água – o Mediterrâneo, os oceanos Atlântico, Índico e Pacífico – foram palco de pirataria, que algumas vezes apoiou e em outras desafiou os interesses políticos e econômicos dos Estados, impérios e nações. A pirataria ao redor do mundo revelou a permeabilidade das fronteiras e também o desafio das autoridades.

Abandonado, Howard Pyle

A pirataria pode ser vista como uma forma de comércio, na qual os indivíduos retiram o lucro agindo como intermediários entre os mercadores ou pelo confisco forçado das mercadorias para venda ou troca. A pirataria, em vários lugares, assinalou a existência das fronteiras – zonas de interação – que surgiram quando o controle político enfraqueceu. Fronteiras vulneráveis estavam, frequentemente, nas extremidades ou nos pontos de encontro de grandes políticas. A pirataria fazia parte de um sistema econômico maior; refletia a instabilidade, a desordem e o caos das fronteiras tanto quanto os criava. Às vezes, a pirataria também podia ser patrocinada pelos governantes ou rebeldes que buscavam utilizar os piratas como mercenários, para a obtenção de fins políticos. A pirataria dependia dos olhos de quem a viam e, se algo era pirataria ou comércio, dependia inteiramente da perspectiva do observador. Encontrada no Mediterrâneo, no Oceano Índico, no Atlântico e no Pacífico, a pirataria era uma extensão das experiências dos limites, dos encontros e das fronteiras terrestres.

Ilha dos Piratas, David Cox

[...] a pirataria [...] floresceu nas zonas limítrofes e de fronteira entre culturas. Durante os séculos XVI e XVII, a pirataria atingiu seu auge no Mediterrâneo, onde nem todos os piratas se opuseram ao controle estatal. Os corsários eram piratas licenciados pelo Estado. Sob o pretexto do corso, dois grupos igualmente apoiados, os Corsários Bárbaros e os Cavaleiros da Ordem de São João, agiram como guerreiros em uma extensão da guerra santa entre os turcos otomanos e a Espanha católica. Na verdade, essas duas forças corsárias realizaram um intercâmbio de mercadorias entre muçulmanos e cristãos que, de outra forma, teria sido impossível. Esses piratas estavam tão integrados na economia do Mediterrâneo que o sultão otomano de Constantinopla concordou com seu comércio ao apontar, pela primeira vez, um líder bárbaro ao posto de governador-geral de Argel, em 1518, e mais tarde ao o tornar almirante das frotas otomanas, em 1535.

O retorno dos corsários, Maurice Orange

Da mesma forma que, a colaboração íntima entre piratas e governos no Mediterrâneo, as elites que viviam ao longo da linha costeira do Canal da Mancha deram suporte em longa escala à pirataria durante a Era Elisabetana (nomeada em homenagem à Elisabeth I, aproximadamente 1588-1603). Por todo o século XVI, a gentry britânico ao longo da costa sul obteve lucros rápidos ao comercializar os espólios dos saqueadores locais. Essas condições se adequaram bem às aspirações das monarquias da época: a guerra com a Espanha era a maior preocupação internacional da soberana Tudor, mas travar a guerra era um problema, pois a monarquia ainda era dependente de forças voluntárias. Ao sancionar os piratas e os transformar em corsários – navios cujos capitães, durante o período de guerra, recebiam a autorização governamental para atacar portos e navios inimigos – Elisabeth obteve uma marinha sem custos em uma época em que a monarquia inglesa era incapaz de sustentar-se.

Captura do pirata Barba Negra, 1718. Jean Leon Gerome Ferris

A ambigüidade das identidades piratas e a constante transformação da natureza do ambiente em que a pirataria floresceu ocorreram igualmente no Oceano Índico. No começo do século XVIII, um marinheiro independente, chamado Kanhoji Angre, aliou-se à confederação de Marayha, que havia se formado na resistência ao Império Mughal. Ele também se aliou aos portugueses em Goa, que estavam interessados em desafiar os britânicos e holandeses, aliados dos Mughal. Contudo, Kanhoji atuou como um agente independente, apesar de sua aliança com os portugueses, de quem ele capturou um dos navios. Ele também capturou um navio inglês levando um agente da Companhia das Índias Orientais Britânica, cuja esposa foi mantida em troca de um resgate (Patrícia Risso). Kanhoji e suas contrapartes, no Oceano Índico, agiram de forma muito semelhante aos piratas de outros lugares. Eles eram como agentes com extrema independência, que eram utilizados por forças políticas terrestres quando necessário. Por sua vez, os piratas mudavam de aliados quando lhes convinha e buscavam enriquecer quando e onde fosse possível.

Espanhóis e corsários bárbaros, Cornelis Hendriksz

A hegemonia europeia e a feroz competição durante o século XVIII cruzaram o Atlântico até o Caribe, onde tudo ocorria em um pano de fundo de constante pirataria e corso. Nem toda pirataria é lucrativa. Um dos primeiros piratas a atravessar o Atlântico foi Paulmier de Gonneville, que tomou, de forma bem sucedida, mercadorias dos espanhóis, mas não foi capaz de recuperar os custos de sua expedição. Mercadores e navios tinham de se defender contra os piratas e corsários. O status de corsário também significava que, se eles fossem pegos por um inimigo, teriam os mesmos direitos dos soldados. Se capturados, eles seriam feitos prisioneiros em vez de serem enforcados como criminosos.

Bucaneiro, Howard Pyle

Os criminosos e os bucaneiros, ou servos fugidos escapando de seus contratos de servidão, encontraram segurança da exploração de seus senhores, lucrando ao se tornarem piratas no Caribe. Os bucaneiros começaram como caçadores de gado fugido em Santo Domingo (onde receberam o nome de boucan, um grill de madeira para carne defumada), e logo começaram a combinar a caça com a pirataria. Os bucaneiros atravessaram o Caribe e o Atlântico e atingiram lugares tão distantes quando Madagascar, no Oceano Índico, onde estabeleceram a República Pirata de Libertalia.

Uma ação entre um navio inglês e vassalos dos corsários bárbaros, Willem van de Velde the Younger

Como suas contrapartes das águas da Ásia e do Mediterrâneo, os piratas do Caribe se juntaram ao patrocínio político. Na verdade, foi difícil distinguir o contrabando do comércio legítimo, de tão pouco ortodoxas e inescrupulosas que eram, igualmente, as negociações dos mercadores e dos piratas. O famoso bucaneiro do final do século XVII, Henry Morgan, velejou sob as ordens do governador da Jamaica, uma colônia britânica. Sua última expedição foi uma tentativa de capturar e pilhar a Cidade do Panamá, apesar dos acordos entre a Espanha e a Inglaterra de cessar essas ilegalidades. Mais devastador para a pirataria do que as leis Britânicas de Navegação, que limitaram o comércio aos navios britânicos, foi o terremoto de Port Royal, em 1692, na Jamaica. O terremoto e as ondas altas subseqüentes açoitaram esse centro costeiro de pirataria, conhecido como “a cidade mais perversa da terra”, até ser coberta pelo mar.

Anne Bonny e Mary Read, Benjamin Cole

Como no mundo das águas cantonês, mulheres piratas não foram alto tão incomum nas fronteiras do Caribe. Duas dessas mulheres foram Mary Read e Anne Bonny, trazidas perante o governador da Jamaica, em 1720, e sentenciadas ao enforcamento. As mulheres foram ao mar como passageiras, serventes, esposas, prostitutas, lavadeiras, cozinheiras e, como menos freqüência, como marinheiras. Para evitar controvérsias e usurpar aquilo que era considerado como uma liberdade masculina, as piratas femininas frequentemente se vestiam como homens, utilizando calças e jaquetas masculinas e carregando pistolas ou machados, se não ambos. Read e Bonny também xingavam e diziam palavrões como qualquer homem. Ambas foram criadas em ambientes familiares não convencionais e se sobressaíram em suas presas escolhidas, sendo reconhecidas como líderes em seus navios piratas. Essas “mulheres guerreiras” foram celebradas ao redor do mundo atlântico em cantigas populares, sugerindo que seu impacto foi tanto econômico quanto cultural.


Piratas dividindo seus despojos, Howard Pyle

GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao presente. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 324, 326-328.

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