Piratas, Max Slevogt
[...] Todos os grandes corpos d’água
– o Mediterrâneo, os oceanos Atlântico, Índico e Pacífico – foram palco de
pirataria, que algumas vezes apoiou e em outras desafiou os interesses políticos
e econômicos dos Estados, impérios e nações. A pirataria ao redor do mundo
revelou a permeabilidade das fronteiras e também o desafio das autoridades.
Abandonado, Howard Pyle
A pirataria pode ser vista como
uma forma de comércio, na qual os indivíduos retiram o lucro agindo como
intermediários entre os mercadores ou pelo confisco forçado das mercadorias
para venda ou troca. A pirataria, em vários lugares, assinalou a existência das
fronteiras – zonas de interação – que surgiram quando o controle político
enfraqueceu. Fronteiras vulneráveis estavam, frequentemente, nas extremidades
ou nos pontos de encontro de grandes políticas. A pirataria fazia parte de um
sistema econômico maior; refletia a instabilidade, a desordem e o caos das
fronteiras tanto quanto os criava. Às vezes, a pirataria também podia ser
patrocinada pelos governantes ou rebeldes que buscavam utilizar os piratas como
mercenários, para a obtenção de fins políticos. A pirataria dependia dos olhos
de quem a viam e, se algo era pirataria ou comércio, dependia inteiramente da
perspectiva do observador. Encontrada no Mediterrâneo, no Oceano Índico, no Atlântico
e no Pacífico, a pirataria era uma extensão das experiências dos limites, dos
encontros e das fronteiras terrestres.
Ilha dos Piratas, David Cox
[...] a pirataria [...] floresceu
nas zonas limítrofes e de fronteira entre culturas. Durante os séculos XVI e
XVII, a pirataria atingiu seu auge no Mediterrâneo, onde nem todos os piratas
se opuseram ao controle estatal. Os corsários eram piratas licenciados pelo
Estado. Sob o pretexto do corso, dois grupos igualmente apoiados, os Corsários
Bárbaros e os Cavaleiros da Ordem de São João, agiram como guerreiros em uma
extensão da guerra santa entre os turcos otomanos e a Espanha católica. Na
verdade, essas duas forças corsárias realizaram um intercâmbio de mercadorias
entre muçulmanos e cristãos que, de outra forma, teria sido impossível. Esses
piratas estavam tão integrados na economia do Mediterrâneo que o sultão otomano
de Constantinopla concordou com seu comércio ao apontar, pela primeira vez, um
líder bárbaro ao posto de governador-geral de Argel, em 1518, e mais tarde ao o
tornar almirante das frotas otomanas, em 1535.
O retorno dos corsários, Maurice Orange
Da mesma forma que, a colaboração
íntima entre piratas e governos no Mediterrâneo, as elites que viviam ao longo
da linha costeira do Canal da Mancha deram suporte em longa escala à pirataria
durante a Era Elisabetana (nomeada em homenagem à Elisabeth I, aproximadamente
1588-1603). Por todo o século XVI, a gentry
britânico ao longo da costa sul obteve lucros rápidos ao comercializar os espólios
dos saqueadores locais. Essas condições se adequaram bem às aspirações das
monarquias da época: a guerra com a Espanha era a maior preocupação
internacional da soberana Tudor, mas travar a guerra era um problema, pois a monarquia
ainda era dependente de forças voluntárias. Ao sancionar os piratas e os
transformar em corsários – navios cujos capitães, durante o período de guerra,
recebiam a autorização governamental para atacar portos e navios inimigos –
Elisabeth obteve uma marinha sem custos em uma época em que a monarquia inglesa
era incapaz de sustentar-se.
Captura do pirata Barba Negra, 1718. Jean Leon Gerome
Ferris
A ambigüidade das identidades
piratas e a constante transformação da natureza do ambiente em que a pirataria
floresceu ocorreram igualmente no Oceano Índico. No começo do século XVIII, um
marinheiro independente, chamado Kanhoji Angre, aliou-se à confederação de
Marayha, que havia se formado na resistência ao Império Mughal. Ele também se
aliou aos portugueses em Goa, que estavam interessados em desafiar os britânicos
e holandeses, aliados dos Mughal. Contudo, Kanhoji atuou como um agente
independente, apesar de sua aliança com os portugueses, de quem ele capturou um
dos navios. Ele também capturou um navio inglês levando um agente da Companhia
das Índias Orientais Britânica, cuja esposa foi mantida em troca de um resgate
(Patrícia Risso). Kanhoji e suas contrapartes, no Oceano Índico, agiram de forma
muito semelhante aos piratas de outros lugares. Eles eram como agentes com extrema
independência, que eram utilizados por forças políticas terrestres quando
necessário. Por sua vez, os piratas mudavam de aliados quando lhes convinha e
buscavam enriquecer quando e onde fosse possível.
Espanhóis e corsários bárbaros, Cornelis Hendriksz
A hegemonia europeia e a feroz
competição durante o século XVIII cruzaram o Atlântico até o Caribe, onde tudo
ocorria em um pano de fundo de constante pirataria e corso. Nem toda pirataria é
lucrativa. Um dos primeiros piratas a atravessar o Atlântico foi Paulmier de
Gonneville, que tomou, de forma bem sucedida, mercadorias dos espanhóis, mas não
foi capaz de recuperar os custos de sua expedição. Mercadores e navios tinham
de se defender contra os piratas e corsários. O status de corsário também significava que, se eles fossem pegos por
um inimigo, teriam os mesmos direitos dos soldados. Se capturados, eles seriam
feitos prisioneiros em vez de serem enforcados como criminosos.
Bucaneiro, Howard
Pyle
Os criminosos e os bucaneiros, ou
servos fugidos escapando de seus contratos de servidão, encontraram segurança
da exploração de seus senhores, lucrando ao se tornarem piratas no Caribe. Os
bucaneiros começaram como caçadores de gado fugido em Santo Domingo (onde
receberam o nome de boucan, um grill de madeira para carne defumada), e
logo começaram a combinar a caça com a pirataria. Os bucaneiros atravessaram o
Caribe e o Atlântico e atingiram lugares tão distantes quando Madagascar, no
Oceano Índico, onde estabeleceram a República Pirata de Libertalia.
Uma ação entre um navio inglês e vassalos dos corsários bárbaros, Willem van de Velde the Younger
Como suas contrapartes das águas
da Ásia e do Mediterrâneo, os piratas do Caribe se juntaram ao patrocínio político.
Na verdade, foi difícil distinguir o contrabando do comércio legítimo, de tão
pouco ortodoxas e inescrupulosas que eram, igualmente, as negociações dos
mercadores e dos piratas. O famoso bucaneiro do final do século XVII, Henry
Morgan, velejou sob as ordens do governador da Jamaica, uma colônia britânica. Sua
última expedição foi uma tentativa de capturar e pilhar a Cidade do Panamá,
apesar dos acordos entre a Espanha e a Inglaterra de cessar essas ilegalidades.
Mais devastador para a pirataria do que as leis Britânicas de Navegação, que
limitaram o comércio aos navios britânicos, foi o terremoto de Port Royal, em
1692, na Jamaica. O terremoto e as ondas altas subseqüentes açoitaram esse
centro costeiro de pirataria, conhecido como “a cidade mais perversa da terra”,
até ser coberta pelo mar.
Anne Bonny e Mary Read, Benjamin Cole
Como no mundo das águas cantonês,
mulheres piratas não foram alto tão incomum nas fronteiras do Caribe. Duas
dessas mulheres foram Mary Read e Anne Bonny, trazidas perante o governador da
Jamaica, em 1720, e sentenciadas ao enforcamento. As mulheres foram ao mar como
passageiras, serventes, esposas, prostitutas, lavadeiras, cozinheiras e, como
menos freqüência, como marinheiras. Para evitar controvérsias e usurpar aquilo
que era considerado como uma liberdade masculina, as piratas femininas
frequentemente se vestiam como homens, utilizando calças e jaquetas masculinas
e carregando pistolas ou machados, se não ambos. Read e Bonny também xingavam e
diziam palavrões como qualquer homem. Ambas foram criadas em ambientes
familiares não convencionais e se sobressaíram em suas presas escolhidas, sendo
reconhecidas como líderes em seus navios piratas. Essas “mulheres guerreiras”
foram celebradas ao redor do mundo atlântico em cantigas populares, sugerindo
que seu impacto foi tanto econômico quanto cultural.
Piratas dividindo seus despojos, Howard Pyle
GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao
presente. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 324, 326-328.
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