"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O legado da China

A dama Guoguo passeando a cavalo, Li Boshi

Tendo como berço a vasta planície sulcada pelas águas do Rio Amarelo, a civilização chinesa desenvolveu-se e expandiu-se numa imensa área da Ásia Oriental e Central não só recebendo contribuições culturais de outros povos, mas também transmitindo a muitas regiões o legado de uma brilhante civilização.

A obra conquistadora e colonizadora dos Han lembra a realização das legiões romanas. Da Coréia ao Vietnam, os legionários dos Han difundiram as ideias do confucionismo sobre a organização estatal: centralização do poder e regularização da administração. E com as concepções políticas seguiram todas as conquistas intelectuais e materiais: as obras de Confúcio e o arado de metal elevavam harmoniosamente o nível cultural dos povos submetidos. “Pela espada e pelo pincel, a China dos Han criou no Extremo Oriente e em todos os países de sua periferia, destinados a transformar-se em estados satélites, o direito administrativo, o direito público, o direito privado”.

O grande veículo da civilização chinesa foi a língua escrita, “língua de cultura e de administração do Anam, até a conquista francesa, da Coréia até a anexação japonesa, do próprio Japão nos primeiros séculos da introdução da civilização chinesa”. O chinês escrito influiu fortemente o vocabulário do idioma de todos esses países “que lhe pediram e frequentemente ainda pedem emprestados termos de cultura, forjando novas expressões com a ajuda de palavras chinesas da língua escrita, como nós o fazemos com o auxílio das palavras do grego antigo”.

Como sucedeu por ocasião da queda do Império Romano do Ocidente, a quebra dos laços políticos entre o Império Chinês e as regiões distantes outrora conquistadas não impediu o desenvolvimento das sementes de civilização lançadas: cresceram, tornaram-se árvores frondosas que ainda hoje frutificam.

Anotemos agora algumas realizações do gênio inventivo chinês que teriam enriquecido o patrimônio cultural do Ocidente.

A porcelana, a seda, a bússola, a imprensa, a pólvora e o papel, eis alguns progressos de nossa civilização que nos fazem pensar na China. O uso da agulha magnética entre os chineses parece remontar a muitos séculos antes de nossa era; mas somente foi introduzido no Ocidente por volta do século XII pelos árabes que o ensinaram aos normandos da Sicília, os quais, por sua vez, o transmitiram a genoveses e venezianos.

Os eruditos chineses discutem a época em que nasceu na China a arte de imprimir. Já nos primeiros séculos da nossa era, moldes de pedra eram utilizados para a impressão das firmas do imperador e dos príncipes. O ministro Feng-Tao, no século X da Era Cristã, conseguiu que fossem gravados em matrizes de madeira os clássicos chineses. No século seguinte, o ferreiro Pisching ou Pi-Sheng teria inventado os tipos móveis.

É difícil, entretanto, estabelecer uma relação entre a invenção chinesa e o aparecimento da imprensa no Ocidente ao findar a Idade Média.

Quanto ao papel, não há dúvida sobre a contribuição chinesa. O segredo da fabricação foi relevado em Samarcanda no século VIII por prisioneiros chineses, espalhando-se daí para o Ocidente por intermédio dos árabes.

A pólvora também nos foi transmitida pelos árabes, que vieram a conhecer o salitre “no curso de seu tráfico com a China e deram-lhe o nome de “neve chinesa”; trouxeram para o Ocidente o segredo da pólvora, que os sarracenos puseram em uso militar; Roger Bacon, o primeiro europeu que a mencionou, deve ter adquirido esse conhecimento no seu estudo dos árabes ou por meio dum viajante da Ásia Central, De Rubruquis”.

Mencionemos ainda, a título e curiosidade, outra contribuição da velha China: o método de resolução de equação do primeiro grau com uma incógnita, supondo o problema resolvido com uma solução por excesso e outra por falta, consta numa obra de matemática da época dos Han e passou à Europa com o nome árabe de “Al Khataayn”, isto é, “a chinesa”.

A história da China, desde milênios, não conhece solução de continuidade. Eis um fato importante a ser considerado quando se procura definir o legado da China antiga à civilização. As velhas tradições, as grandes sínteses doutrinárias filosófico-religiosas que no passado deitaram raízes na alma chinesa, continuaram durante toda a história a influir na mentalidade das gerações que se sucederam no velho país do Extremo Oriente. Tal asserção pode ser ilustrada com o exemplo do confucionismo que, durante milênios, tem sido o “código ortodoxo de toda a vida moral e espiritual e, apesar dos sistemas concorrentes, continua a ser o princípio diretivo da vida social. Desde a dinastia dos Han, a instrução pública baseia-se inteiramente sobre os ensinamentos de Confúcio, cujo alcance espiritual, malgrado os desvios que a fraqueza humana lhe imprimiu, continua integral. [...]


GIORDANI, Mário Curtis. História da antiguidade oriental. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 435-437.

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