A filha do faraó encontra o bebê Moisés, Konstantin Flavitsky
Nenhuma dúvida: Moisés carregava um nome egípcio. Em sua forma hebraica, Moshè, ou grega, Môsès, ele provinha do original Masi, abreviação corrente na época raméssida de nomes próprios tipicamente egípcios, tais como Ri'amassi (Rá nasceu), ou Harmassi (Hórus nasceu). Portanto, o componente do nome do deus desapareceu pura e simplesmente. Um contramestre chamado Moisés tornou-se conhecido por haver organizado a primeira greve da história na aldeia de Deir el-Medineh, perto do célebre Vale dos Reis. Os israelitas aproximaram esse nome nilótico do verbo hebraico mascha (tirar). A similitude de pronúncia é puramente acidental, mas isso bastou aos redatores da Bíblia para dar origem à etimologia popular "tirado das águas" para o nome do patriarca.
"Os autores bíblicos que relatam o nascimento de Moisés conhecem, aliás, muito bem a etimologia egípcia de seu nome. Durante todo o relato do Êxodo, ele é continuamente designado como 'a criança', o que corresponde em hebraico à raiz egípcia m-s-y, 'gerado por' ou 'filho de'. É a filha do faraó que chama assim, ligando-o a uma etimologia hebraica, por sinal incorreta", menciona Thomas Römer, em seu livro Moise, lui que Yahvé a connu face à face (Moisés, aquele que Yahvé conheceu face a face). Mas esse nome seria o bastante para fazer dele um egípcio?
Não há certeza. Isso porque, sob um nome tipicamente egípcio, podia-se encontrar um estrangeiro. Os faraós do Novo Império "importaram", pela força e pela violência, uma abundante mão de obra vinda de Canaã, necessária para construir seus monumentos. Os textos comprovam que essa população, móvel e inquieta em certas ocasiões, também podia atingir o topo do poder. Esses cananeus adotavam então os patronímicos e os costumes dos egípcios - hoje em dia, se falaria em integração. Foi o caso da família de Moisés? E o de José, filho de Jacó? Vendido por seus irmãos no Egito, lançado à prisão, José se tornaria vizir, o segundo personagem mais poderoso do Estado. "A história do estabelecimento de José no Egito, de sua queda simbolizava pela prisão, depois de sua elevação e, finalmente, de seu triunfo, inscreve-se muito bem, como gerações de sábios puderam mostrar, nesse Egito do Novo Império e particularmente da XVIII dinastia", constata Alain Zivie. Nem mesmo seus irmãos o reconheceram. Aos olhos deles, José era egípcio! Sua integração foi um êxito total, como foi talvez a de um homem de origem semita denominado Moisés.
Hoje em dia, está na moda escrever que Moisés era de origem egípcia e que ele foi influenciado pelo pensamento de Akhenaton. Alguns vão ainda mais longe ao fazer do "faraó herético" e de Moisés uma única e mesma pessoa. A essa hipótese, podemos objetar que o resultado de escavações empreendidas na Palestina mostrou que Israel não nasceu de um êxodo do Egito, mas da transformação de uma parte da população cananeia, que começou no final do segundo milênio antes da nossa era, portanto muito longe do Nilo.
Como imaginar um Moisés egípcio quando se comparam o judaísmo e a religião egípcia, ainda que "revista e corrigida" por Akhenaton? O laço entre essas duas personagens não implica que Aton e Yahvé estejam ligados. É surpreendente que alguns possam confundir o Deus de Moisés com uma divindade egípcia, mesmo que fosse Akhenaton. Quando este último reza a Aton, é a uma manifestação do Sol, figurado sob a forma do disco, que ele se dirige. Akhenaton tem portanto necessidade de recorrer a uma imagem de seu deus, a imagem de um disco com os raios terminados em mãos.
Ora, o segundo mandamento divino, contido no Decálogo, condena qualquer associação de um elemento do universo, qualquer que seja esse elemento, com Yahvé. Acrescentemos que, na atualidade, os especialistas - sejam eles egiptólogos, linguistas, arqueólogos ou exegetas bíblicos - descobriram que a revelação esteve longe de ser repentina, mas foi o fruto de um longo caminho aberto no século VIII e completado no século V antes de nossa era. Ao passo que a "revelação atoniana" foi imediata: não há a menor necessidade de seguir seu desenvolvimento desde a época das pirâmides até a vinda ao mundo de Akhenaton. Hoje em dia, os pesquisadores voltam os olhos para essa população semítica instalada no Egito.
Assim, "para o Novo Império, contam-se não menos de 60 estrangeiros que indubitavelmente ocuparam cargos muito elevados no clero e na administração. Para apreciar bem esse número, é preciso levar em conta, por um lado, as lacunas de nossa documentação e, por outro, o fato de que muitos funcionários de origem estrangeira não são mais reconhecíveis enquanto tais por haverem adotado nomes egípcios. Em outras palavras, tem-se todo o espaço para acreditar que essa cifra esteja bem abaixo da realidade", escreveu Pascal Vernus em sua obra Les étrangers dans la civilisation faraonique (Os estrangeiros na civilização faraônica).
Entre os altos dignitários do poder faraônico cabe mencionar os copeiros reais, encarregados do serviço de bebidas na mesa real. que eram com frequência asiáticos e semitas. Esses homens estavam muito próximos do faraó, que lhes confiava responsabilidades importantes, como as grandes construções do reino.
Em Saqquarah, as escavações revelaram um vizir de Amenófis III e de Amenófis IV chamado Aper-El, um nome semítico, pois contém o nome do deus El (retomado, por exemplo, em Isra-el). Era uma "criança do kep", título honorífico concedido àqueles que eram educados na corte real, ao lado dos príncipes e dos filhos dos reis vassalos do faraó. Antes de ser vizir, Aper-El era o general dos carros de guerra, função que ele transmitia a um de seus filhos. Ele recebeu também o título prestigioso de "pai divino" e estava entre os confidentes do rei. Mais ainda, tornou-se "responsável pela nutrição das crianças reais", atuando como preceptor dos príncipes e princesas da corte.
Sob os faraós raméssidas (de 1200 a 1050 antes da nossa era), muitos estrangeiros alcançaram posições de confiança. Alguns interessam muito aos estudiosos da Bíblia, que desenvolvem pesquisas sobre as origens de Moisés. Eles estudam documentos faraônicos que focalizam diversos grandes personagens cujo nome comporta o afixo "Moisés".
Vamos nos deter inicialmente num certo Ben-Ozen, um nome que pode ser traduzido por "Filho da audição" ou por "Filho da obediência". Ele era originado da localidade de Bashan, na Transjordânia. Sua relação com Moisés? Ele trazia um nome egípcio, Ramsesemperrê, construído sobre a raiz Mosès, como Moisés. Conta-se que ele teria servido como mediador num conflito que opôs os shasu (beduínos) sujeitos à prestação de corveias (trabalho gratuito) a funcionários egípcios. Pensa-se no famoso episódio bíblico em que Moisés assume a defesa de um escravo hebreu (Êxodo 2, 11-15). Infelizmente a documentação não registra nenhuma revolta dos shasu nem a fuga deles sob a condução de um alto dignitário egípcio. Assim, Ben-Ozen não responde às condições desejadas para especular que ele seria a fonte do Moisés bíblico. Procuremos outro.
Um novo postulante ao posto de Moisés "histórico" é o diretor do Tesouro egípcio, um homem denominado Bay (ou Beya). "Abrigando-se por trás do frágil faraó Siptah (1206-1188 antes de nossa era), um enfermo, e da regente - depois faraó - Tauseret, ele puxava, na sombra, os cordões do poder durante o período de instabilidade que se seguiu ao reinado de Seti II. Atribuindo-se poderes exorbitantes, ele procurou colocar o país sob seu controle desenvolvendo o projeto de pagar estipêndios a potentados asiáticos para reforçar o próprio domínio.
Seu empreendimento teria sido bem-sucedido não fosse a intervenção do enérgico Sethnakht, fundador da XXª dinastia. "Apesar desse insucesso, o caso de Bay permanece exemplar. Ele mostra como estrangeiros podiam conquistar para si uma posição eminente, ao conseguir conquistar a estima e a confiança do faraó por suas qualidades. Evidentemente, não se pode deixar de pensar na carreira de José no Egito", enfatiza Pascal Vernus. Mas, por que não em Moisés? Bay tem um duplo patronímico, do qual um é o egípcio Ramsès-Kha-em-neterou, "Ramsés é a manifestação dos deuses" que traz em si a raiz Mosès.
Chegou a haver suspeitas de que o manipulador Bay estivesse na origem da morte prematura de Siptah, que subiu ao trono aos 10 anos de idade e manteve nele apenas cinco, morrendo de maneira misteriosa. A morte de Siptah permitiu à rainha Tauseret tornar-se faraó, com o apoio do chanceler Bay, que na ocasião se transformou em fazedor de faraós. Mas essa ascensão feminina ao trono desencadeou uma oposição armada. Para dominá-la, Tauseret e Bay recrutaram, segundo os textos, um exército de cananeus e se apoderaram do ouro e da prata dos egípcios. Segundo Thomas Römer, esse episódio poderia evocar a tradição bíblica da "espoliação dos egípcios": "Os filhos de Israel fizeram como Moisés havia dito, e pediram aos egípcios objetos de prata, objetos de ouro e roupas" (Êxodo 12, 35).
Finalmente, o chefe da revolta triunfou e foi à caça de Bay e Tauseret. Acompanhados de alguns fiéis, eles conseguiram fugir. Mas, se Moisés escapou de seus perseguidores, que se afogaram no "mar dos Juncos", Bay foi executado e seu nome apagado onde quer que se encontrasse.
Parece difícil tomar por modelo de Moisés o chanceler Bay. "O Egito estava caótico: cada um era em si mesmo sua própria lei. Pois não tinha havido governante durante numerosos anos: o Egito estava dividido entre os notáveis e os administradores das aldeias, e cada um degolava o seu próximo, tanto os ricos quando os pobres. Depois veio uma outra linhagem durante os anos vazios. Iarsou (Bay), um sírio, ali estava associado como notável. Como administrador, ele colocou o país inteiro sob o seu controle: ele e seus cúmplices se organizaram para roubar as pessoas. E os deuses eram submetidos ao mesmo tratamento dos homens: as oferendas não eram mais consagradas nos santuários", relata o papiro Harris.
"O nome de Iarsou, que se pode compreender em egípcio como 'aquele que se fez por si mesmo', seria um modo cheio de desprezo de designar Bay e ao mesmo tempo lhe recusar a existência póstuma concedida pelo simples fato de pronunciar o verdadeiro nome de alguém. Esse procedimento é corrente nos textos políticos. os anos 'vazios' designam o tempo em que o poder é considerado vago, por ser ocupado por uma linhagem usurpadora", observa o egiptólogo Nicolas Grimal. É difícil imaginar que um homem cujo nome se apagou dos monumentos que ele construiu e cujo patronímico se trocou tenha deixado rastros na memória dos homens, até atingir as lembranças dos autores da Bíblia. Bay sai de cena. Então, pensa-se em um faraó...
Dissemos antes que a época que se abre com a morte de Ramsés II (em 1235 antes de nossa era) foi agitada. Ela chegou a ver um usurpador, Amenmeses, tomar o poder. Como os dois altos dignitários evocados acima, ele tem o nome construído sobre Mosès e poderia ter inspirado os redatores da Bíblia, já que teria sido - de acordo com o egiptólogo Rolf Krauss - um vice-rei da Núbia que partiu daquela região distante para conquistar o poder faraônico. Ora, sabe-se que certas lendas judias extrabíblicas conduzem Moisés à Núbia. Além disso, a própria Bíblia dá a Moisés uma mulher etíope (na Antiguidade, chamava-se a Etiópia de Núbia).
Amenmeses tomou o poder ao fim de uma guerra civil. Depois de ser derrubado do trono, ninguém sabe o que aconteceu com ele. Um destino que marcou a memória do Egito. Sobre as memórias hebraicas, é incerto. Diante de tudo isso, a identidade do Moisés histórico está longe de parar de intrigar os pesquisadores.
Richard Lebeau. Moisés, o egípcio. In: Revista História Viva. Grandes Temas, nº 46, p. 10-15.
NOTA: O texto "Moisés, o egípcio" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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