Foi o grande instrumento de
dominação dos índios. Manuel Amat expressou claramente: “Os religiosos devem
ser úteis ao Estado”. Manuel Amat sabia o que dizia: era Vice-rei do Peru.
Foi ao mesmo tempo um formidável
poder econômico. Cobrou dízimos sobre a produção rural, recebeu infinitas
doações e heranças, possuiu gigantescas propriedades territoriais e imponentes
edifícios urbanos: o esplendor arquitetônico, que marca sua presença no
continente, confirma seu poder e sua riqueza.
Índios e missionários atravessando um rio na região do Chaco, Florian Paucke
Interveio na educação, cultura,
arte e na vida das pessoas; fundou universidades e introduziu imprensas; ergueu
bibliotecas e fez autos de fé com os livros que continham a sabedoria indígena.
Condenou os hereges aos calabouços da Inquisição: pagãos, judeus e judaizantes;
em não poucas ocasiões defendeu ardorosamente o indígena, o desamparado; em
outras, agiu tal qual os conquistadores. Não negou as instituições repressoras,
quis atenuá-las, humanizá-las. Possuiu escravos, mas alguns de seus membros
repudiaram a escravidão. Fez negócios e emprestou dinheiro a juros, enterrando
na tumba do esquecimento seu repúdio medieval aos juros e os negócios. Na
pessoa dos jesuítas teve os mais notáveis administradores de negócios que a
história colonial conheceu; os mais habilidosos apaziguadores de índios. Ela
tentou penetrar o mais profundo na alma indígena para retirar dela a antiga
herança cultural e religiosa: conseguiu em termos relativos. Procurou construir
Igrejas e Catedrais utilizando, como alicerces, as ruínas dos centros
cerimoniais nativos. Catequizou milhões de índios, mas é duvidoso que tenha
penetrado até os últimos desvãos de sua consciência. E talvez, sabendo disso,
colocou imagens de Virgens e santos nos altares diante dos quais se ajoelhavam
os adoradores do sol, da terra e da serpente emplumada. Fez com que o culto
fosse compreensível para os povos conquistados: aprendeu seus idiomas e neles
redigiu catecismos, livros edificantes, histórias de santos. E àqueles que
reverenciavam deidades que amparavam as colheitas e as atividades da terra, a
família e as pessoas, a água, as árvores e os pássaros, propôs imagens
visíveis, mais que um Deus abstrato. O Colibri Zurdo dos nativos se transformou
no Santiago espanhol, atropelador de pagãos com as patas de seu cavalo; Tlaloc
passou a ser Senhor del Sacromonte; Nossa Senhora Espírito, a Virgem de
Guadalupe.
A Igreja encontrou no Frei Juan
de Zumárraga, primeiro bispo do México, um discípulo de Erasmo de Roterdam,
denunciador de atrocidades. E, em Vasco de Quiroga, primeiro bispo de
Michoacan, um admirador de Tomas Morus que tentou, em sua diocese, transformar
a Utopia em realidade. No entanto, o primeiro grande esforço dos espanhóis e da
Igreja era converter a nobreza nativa; depois dela viria – supunha-se – o povo
baixo e ignaro.
Os quadros eclesiais eram
compostos pela mais variada gama de seres humanos. Frei Angel de Valencia e
outros franciscanos, ao se dirigirem ao Imperador em 1553, pediam que os
clérigos que fossem às Índias fossem “examinados, visitados e preparados,
porque uma das maiores pestilências que a doutrina de Cristo sofre é por parte
dos clérigos”. Hernán Cortez, longe de ser um santo, dirigia-se a Carlos V, em
1424, dizendo-se escandalizado pelas “pompas e outros vícios” dos clérigos, “e
que se os índios vissem os vícios e profanidades que agora mostram em nosso
Reino [...] seria um dano tão grande que não aproveitariam nada das pregações
feitas”. O cronista Fernández de Oviedo observa que os sacerdotes costumam
casar-se, o que não lhe parece um erro, pois a terra deve ser povoada. Mas, o
que seria conveniente – prossegue – que os filhos passassem por sobrinhos. No
terceiro Concílio de Lima (1583) Santo Toríbio Mogrovejo recordava aos clérigos
que eles deviam ser pastores de almas e “não carniceiros, porque é muito feio
que os Ministros de Deus sejam verdugos dos índios”. O padre Tomás Gage, que
viveu na Guatemala na primeira metade do século XVII, revela que “as imagens
dos santos que dependem das igrejas” produzem “continuamente, ao padre, somas
de dinheiro, galinhas, círios e outras oferendas”. Enquanto padre de dois
povoados, com dezoito imagens em um, e vinte no outro, “me produziam quatro
escudos cada dia de festas, pela missa, pelo sermão e fazer uma procissão; além
disto, galinhas, perus, cacau e as oferendas que colocavam diante dos santos”.
Seria fácil continuar com este
tipo de depoimentos, mas a justiça pede que seja ressaltada a extraordinária
prédica de Bartolomeu de Las Casas em favor dos índios, e de outros que sem
chegar a tão grande fama, defenderam os aborígenes das violências físicas e
cobranças econômicas. Mas casos individuais não definem a ação global, e esta –
repetimos – foi o grande instrumento de dominação. A Igreja fez pregações sobre
a resignação e a submissão, a humildade e a mansidão. Amenizou os tristes dias
dos índios com as coloridas festas e procissões da Semana Santa, o Patrono do
povoado, Corpus, Natal e tantas outras. Permitiu que nas festividades católicas
se misturassem antigos rituais de religiões pré-colombianas; foi condescendente
com o impulso que emergia do mais profundo da consciência indígena. Talvez não
tenha ignorado que quando os índios se ajoelhavam diante do altar, o significado
de suas preces divergia profundamente daquele que o cristianismo pedia. Muitas
de suas celebrações – anota Cardoza e Aragon – comemoravam o triunfo dos
conquistadores, a derrota dos nativos. John L. Stephens, que visita a Guatemala
em 1839-1840 observa que na maior parte das entremezes, louvações ou balés
rudimentares tratavam os mouros e os chefes indígenas de maneira ridícula e
invariavelmente vencidos pelos conquistadores. Os dias de festas e descanso – o
tempo livre, digamos – eram aproveitados para a doutrinação ideológica do
dominador, introduzindo o sentimento de um valor menor naqueles que, sendo os
filhos da terra, deviam acatar ao homem branco e civilizado exatamente por
isso: por ser branco e civilizado.
A Coroa espanhola manteve sobre
os clérigos no continente um controle férreo: não permitiu que eles se lhe
escapassem. E quando um grupo ou uma ordem ultrapassou os limites admissíveis
do poder espiritual e temporal, foi expulso. Em 1767, os jesuítas foram
expulsos. No México, onde a Igreja, no final do período colonial, chegou a
possuir a metade das terras planas férteis, os soldados de sotaina de Ignácio
de Loyola eram proprietários de 45 fazendas com mais de 1.100.000 hectares ;
tinham seis engenhos de açúcar (com um valor que oscilava entre 500.000 e m
milhão de escudos), 300.000 carneiros e outros grandes rebanhos. O bispo de
Puebla, Juan de Palafox, observa: “A opulência de seus bens, que é excessiva,
uma estupenda capacidade para fazer dar frutos e crescer mais, e a indústria do
tráfico e comércio, tendo armazéns públicos de mercadorias, de animais,
açougues, lojas para negócios dos mais vis e indignos de sua profissão,
enviando uma parte dessas mercadorias à China, pelo caminho das Filipinas.
Na Guatemala, no vale das Mesas
de Petapa, entre oito “maravilhosos e opulentos engenhos” a Igreja tinha cinco.
No Peru, foram incalculáveis as riquezas acumuladas. [...]
A alta hierarquia luziu pompas e
luxos fora do comum, insolentes; a corrupção depravou corpos e almas. Não foram
poucos os sacerdotes que empunharam armas e foram à luta; não faltaram os
intrigantes e os santos homens. Nem todos os padres mandaram, mas a Igreja
mandou.
POMER, León. História da América hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p.
144-145.
NOTA: O texto "A Igreja na América hispano-indígena" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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