"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 5 de janeiro de 2014

A Igreja na América hispano-indígena

Foi o grande instrumento de dominação dos índios. Manuel Amat expressou claramente: “Os religiosos devem ser úteis ao Estado”. Manuel Amat sabia o que dizia: era Vice-rei do Peru.

Foi ao mesmo tempo um formidável poder econômico. Cobrou dízimos sobre a produção rural, recebeu infinitas doações e heranças, possuiu gigantescas propriedades territoriais e imponentes edifícios urbanos: o esplendor arquitetônico, que marca sua presença no continente, confirma seu poder e sua riqueza.


Índios e missionários atravessando um rio na região do ChacoFlorian Paucke

Interveio na educação, cultura, arte e na vida das pessoas; fundou universidades e introduziu imprensas; ergueu bibliotecas e fez autos de fé com os livros que continham a sabedoria indígena. Condenou os hereges aos calabouços da Inquisição: pagãos, judeus e judaizantes; em não poucas ocasiões defendeu ardorosamente o indígena, o desamparado; em outras, agiu tal qual os conquistadores. Não negou as instituições repressoras, quis atenuá-las, humanizá-las. Possuiu escravos, mas alguns de seus membros repudiaram a escravidão. Fez negócios e emprestou dinheiro a juros, enterrando na tumba do esquecimento seu repúdio medieval aos juros e os negócios. Na pessoa dos jesuítas teve os mais notáveis administradores de negócios que a história colonial conheceu; os mais habilidosos apaziguadores de índios. Ela tentou penetrar o mais profundo na alma indígena para retirar dela a antiga herança cultural e religiosa: conseguiu em termos relativos. Procurou construir Igrejas e Catedrais utilizando, como alicerces, as ruínas dos centros cerimoniais nativos. Catequizou milhões de índios, mas é duvidoso que tenha penetrado até os últimos desvãos de sua consciência. E talvez, sabendo disso, colocou imagens de Virgens e santos nos altares diante dos quais se ajoelhavam os adoradores do sol, da terra e da serpente emplumada. Fez com que o culto fosse compreensível para os povos conquistados: aprendeu seus idiomas e neles redigiu catecismos, livros edificantes, histórias de santos. E àqueles que reverenciavam deidades que amparavam as colheitas e as atividades da terra, a família e as pessoas, a água, as árvores e os pássaros, propôs imagens visíveis, mais que um Deus abstrato. O Colibri Zurdo dos nativos se transformou no Santiago espanhol, atropelador de pagãos com as patas de seu cavalo; Tlaloc passou a ser Senhor del Sacromonte; Nossa Senhora Espírito, a Virgem de Guadalupe.

A Igreja encontrou no Frei Juan de Zumárraga, primeiro bispo do México, um discípulo de Erasmo de Roterdam, denunciador de atrocidades. E, em Vasco de Quiroga, primeiro bispo de Michoacan, um admirador de Tomas Morus que tentou, em sua diocese, transformar a Utopia em realidade. No entanto, o primeiro grande esforço dos espanhóis e da Igreja era converter a nobreza nativa; depois dela viria – supunha-se – o povo baixo e ignaro.

Os quadros eclesiais eram compostos pela mais variada gama de seres humanos. Frei Angel de Valencia e outros franciscanos, ao se dirigirem ao Imperador em 1553, pediam que os clérigos que fossem às Índias fossem “examinados, visitados e preparados, porque uma das maiores pestilências que a doutrina de Cristo sofre é por parte dos clérigos”. Hernán Cortez, longe de ser um santo, dirigia-se a Carlos V, em 1424, dizendo-se escandalizado pelas “pompas e outros vícios” dos clérigos, “e que se os índios vissem os vícios e profanidades que agora mostram em nosso Reino [...] seria um dano tão grande que não aproveitariam nada das pregações feitas”. O cronista Fernández de Oviedo observa que os sacerdotes costumam casar-se, o que não lhe parece um erro, pois a terra deve ser povoada. Mas, o que seria conveniente – prossegue – que os filhos passassem por sobrinhos. No terceiro Concílio de Lima (1583) Santo Toríbio Mogrovejo recordava aos clérigos que eles deviam ser pastores de almas e “não carniceiros, porque é muito feio que os Ministros de Deus sejam verdugos dos índios”. O padre Tomás Gage, que viveu na Guatemala na primeira metade do século XVII, revela que “as imagens dos santos que dependem das igrejas” produzem “continuamente, ao padre, somas de dinheiro, galinhas, círios e outras oferendas”. Enquanto padre de dois povoados, com dezoito imagens em um, e vinte no outro, “me produziam quatro escudos cada dia de festas, pela missa, pelo sermão e fazer uma procissão; além disto, galinhas, perus, cacau e as oferendas que colocavam diante dos santos”.

Seria fácil continuar com este tipo de depoimentos, mas a justiça pede que seja ressaltada a extraordinária prédica de Bartolomeu de Las Casas em favor dos índios, e de outros que sem chegar a tão grande fama, defenderam os aborígenes das violências físicas e cobranças econômicas. Mas casos individuais não definem a ação global, e esta – repetimos – foi o grande instrumento de dominação. A Igreja fez pregações sobre a resignação e a submissão, a humildade e a mansidão. Amenizou os tristes dias dos índios com as coloridas festas e procissões da Semana Santa, o Patrono do povoado, Corpus, Natal e tantas outras. Permitiu que nas festividades católicas se misturassem antigos rituais de religiões pré-colombianas; foi condescendente com o impulso que emergia do mais profundo da consciência indígena. Talvez não tenha ignorado que quando os índios se ajoelhavam diante do altar, o significado de suas preces divergia profundamente daquele que o cristianismo pedia. Muitas de suas celebrações – anota Cardoza e Aragon – comemoravam o triunfo dos conquistadores, a derrota dos nativos. John L. Stephens, que visita a Guatemala em 1839-1840 observa que na maior parte das entremezes, louvações ou balés rudimentares tratavam os mouros e os chefes indígenas de maneira ridícula e invariavelmente vencidos pelos conquistadores. Os dias de festas e descanso – o tempo livre, digamos – eram aproveitados para a doutrinação ideológica do dominador, introduzindo o sentimento de um valor menor naqueles que, sendo os filhos da terra, deviam acatar ao homem branco e civilizado exatamente por isso: por ser branco e civilizado.

A Coroa espanhola manteve sobre os clérigos no continente um controle férreo: não permitiu que eles se lhe escapassem. E quando um grupo ou uma ordem ultrapassou os limites admissíveis do poder espiritual e temporal, foi expulso. Em 1767, os jesuítas foram expulsos. No México, onde a Igreja, no final do período colonial, chegou a possuir a metade das terras planas férteis, os soldados de sotaina de Ignácio de Loyola eram proprietários de 45 fazendas com mais de 1.100.000 hectares; tinham seis engenhos de açúcar (com um valor que oscilava entre 500.000 e m milhão de escudos), 300.000 carneiros e outros grandes rebanhos. O bispo de Puebla, Juan de Palafox, observa: “A opulência de seus bens, que é excessiva, uma estupenda capacidade para fazer dar frutos e crescer mais, e a indústria do tráfico e comércio, tendo armazéns públicos de mercadorias, de animais, açougues, lojas para negócios dos mais vis e indignos de sua profissão, enviando uma parte dessas mercadorias à China, pelo caminho das Filipinas.

Na Guatemala, no vale das Mesas de Petapa, entre oito “maravilhosos e opulentos engenhos” a Igreja tinha cinco. No Peru, foram incalculáveis as riquezas acumuladas. [...]

A alta hierarquia luziu pompas e luxos fora do comum, insolentes; a corrupção depravou corpos e almas. Não foram poucos os sacerdotes que empunharam armas e foram à luta; não faltaram os intrigantes e os santos homens. Nem todos os padres mandaram, mas a Igreja mandou.


POMER, León. História da América hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 144-145.

NOTA: O texto "A Igreja na América hispano-indígena" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário