Coleta para a manutenção da Igreja do Rosário,
Jean Baptiste Debret
Os deslocamentos de devotos para a prática de culto a divindades em locais sagrados distantes - peregrinações chamadas em sua versão ibérica de romarias, em lembrança das excursões dos primeiros cristãos a Roma - constituem uma prática vinda da Antiguidade.
A motivação das caminhadas coletivas de fé baseou-se sempre na crença de que, em determinados locais, existiriam poderes sobrenaturais, quer por estarem concentradas neles as forças da natureza, quer pela descoberta de algo julgado milagroso junto a rios, fontes, cavernas, pedras, árvores ou bosques.
Em idade histórica, aliás, o fato de, próximo a Olímpia, a memória do deus grego Zeus ser lembrada em um altis ou bosque sagrado indica bem que esse deus dos deuses, muito antes de ganhar face humana em poemas de Homero, nove séculos antes de Cristo, já andava representado, em lugar ermo, em um carvalho ou em pedras de corte retangular ou em forma de obelisco ou de pirâmide.
Com o advento do cristianismo, essa tendência milenar à reverência mística de objetos, simbolicamente revestidos de poder sobrenatural, que no Ocidente já enfrentara a concorrência da requintada teogonia do politeísmo greco-romano, precisou adaptar-se a uma nova teofania que, a partir da imposição da ideia de um Deus feito homem, reduzia os mitos fundadores vindos da Antiguidade à necessidade de aceitação de uma hierofania representada figurativamente pelas imagens dos santos e pela busca por relíquias.
Essa fidelidade das camadas populares ao arquétipo da representação de poderes sobrenaturais em objetos materiais estava destinada, de qualquer forma, a facilitar o sucesso do cristianismo na adesão ao novo conceito de relíquia, que propunha enxergar também o sagrado em ossos, dentes, mechas de cabelos ou amostras de qualquer coisa ligada à presença de Cristo, sua família ou apóstolos, nos chamados lugares santos da Palestina.
Em verdade, foi a onda mística das peregrinações a Jerusalém em busca de relíquias, partidas da Europa desde o quinto século depois de Cristo, que permitiu a revivescência disfarçada de antigas práticas de cultos pagãos, já agora identificando em objetos não a representação de poderes mágicos ou sobrenaturais, mas a herança visível de algo materialmente ligado ao mistério da fé.
Essa busca por relíquias, aliás, ao acrescentar à intenção devota das peregrinações ao Oriente próximo o caráter de nova corrente de comércio com os árabes (há muito ativos na troca de bens do Oriente com os europeus através do Egito e de Constantinopla), acabou por gerar uma consequência política de grande repercussão histórica. É que, como a ocupação de Jerusalém em 1076 pelos turcos seldjúcidas (inimigos inconciliáveis dos cristãos) vinha coincidir com o início da luta contra a ocupação árabe da Península Ibérica, a partir da tomada de Toledo, em 1086, o papa Urbano II aproveitou para lançar, em 1095, a novidade das peregrinações armadas, sob o nome de cruzadas.
E foi assim que, nesse mesmo ano, os pobres da Europa, convocados por dois líderes religiosos - Pedro Eremita e Gauthier Sans Avoir -, partiram para a aventura da tomada do Santo Sepulcro pela força, em uma caminhada de fé que, registrada pela história com o nome de Cruzada dos Mendigos, redundaria no massacre da multidão de peregrinos pelos turcos, tão logo atingida a Ásia Menor.
Essa tão antiga disposição natural de acorrer em grupo aos locais de culto ou oráculos - e, entre os gregos, até o envio de embaixadas sagradas aos jogos de Olímpia, Delfos ou Delos, as chamadas teorias -, quando revestida de caráter, por assim dizer oficial, ou seja, quando destinada a cortejos locais de iniciativa do Estado ou de igrejas constituídas, ganhava estrutura sujeita a regras determinadas, para receber então o nome particular de procissão.
O esquema das procissões, logo adotado pelo cristianismo quando de sua institucionalização como igreja, sob o conceito do katholikós, universal, ia ganhar com a organização de suas regras litúrgicas diversas variantes: procissões de bênção, para dias determinados, como Domingo de Ramos; procissões votivas, como a celebração da Assunção (recebimento da Virgem maria no céu); procissões de trasladação, para acompanhar a mudança pública de imagens ou relíquias; procissões de peregrinação, à volta de grutas milagrosas como a de Lourdes, na frança, ou do Santuário de Fátima, em Portugal; e, por fim, procissões comemorativas de milagres ou acontecimentos da vida religiosa ou civil.
Pois essas procissões, que afinal reproduziam, em âmbito limitado, as livres caminhadas dos antigos a seus locais de culto, estavam destinadas a evoluir para certa teatralização religiosa que, em menos de um milênio, ia permitir a volta das velhas peregrinações de fé coletiva à sua origem popular, acrescida de um nítido sentido de festa, no que viria a se chamar, em Portugal, de círios e romarias.
TINHORÃO, José Ramos. Festa de negro em devoção de branco: do carnaval na procissão ao teatro no círio. São Paulo: UNESP, 2012. p. 3-6.
Em idade histórica, aliás, o fato de, próximo a Olímpia, a memória do deus grego Zeus ser lembrada em um altis ou bosque sagrado indica bem que esse deus dos deuses, muito antes de ganhar face humana em poemas de Homero, nove séculos antes de Cristo, já andava representado, em lugar ermo, em um carvalho ou em pedras de corte retangular ou em forma de obelisco ou de pirâmide.
Com o advento do cristianismo, essa tendência milenar à reverência mística de objetos, simbolicamente revestidos de poder sobrenatural, que no Ocidente já enfrentara a concorrência da requintada teogonia do politeísmo greco-romano, precisou adaptar-se a uma nova teofania que, a partir da imposição da ideia de um Deus feito homem, reduzia os mitos fundadores vindos da Antiguidade à necessidade de aceitação de uma hierofania representada figurativamente pelas imagens dos santos e pela busca por relíquias.
Essa fidelidade das camadas populares ao arquétipo da representação de poderes sobrenaturais em objetos materiais estava destinada, de qualquer forma, a facilitar o sucesso do cristianismo na adesão ao novo conceito de relíquia, que propunha enxergar também o sagrado em ossos, dentes, mechas de cabelos ou amostras de qualquer coisa ligada à presença de Cristo, sua família ou apóstolos, nos chamados lugares santos da Palestina.
Em verdade, foi a onda mística das peregrinações a Jerusalém em busca de relíquias, partidas da Europa desde o quinto século depois de Cristo, que permitiu a revivescência disfarçada de antigas práticas de cultos pagãos, já agora identificando em objetos não a representação de poderes mágicos ou sobrenaturais, mas a herança visível de algo materialmente ligado ao mistério da fé.
Essa busca por relíquias, aliás, ao acrescentar à intenção devota das peregrinações ao Oriente próximo o caráter de nova corrente de comércio com os árabes (há muito ativos na troca de bens do Oriente com os europeus através do Egito e de Constantinopla), acabou por gerar uma consequência política de grande repercussão histórica. É que, como a ocupação de Jerusalém em 1076 pelos turcos seldjúcidas (inimigos inconciliáveis dos cristãos) vinha coincidir com o início da luta contra a ocupação árabe da Península Ibérica, a partir da tomada de Toledo, em 1086, o papa Urbano II aproveitou para lançar, em 1095, a novidade das peregrinações armadas, sob o nome de cruzadas.
E foi assim que, nesse mesmo ano, os pobres da Europa, convocados por dois líderes religiosos - Pedro Eremita e Gauthier Sans Avoir -, partiram para a aventura da tomada do Santo Sepulcro pela força, em uma caminhada de fé que, registrada pela história com o nome de Cruzada dos Mendigos, redundaria no massacre da multidão de peregrinos pelos turcos, tão logo atingida a Ásia Menor.
Essa tão antiga disposição natural de acorrer em grupo aos locais de culto ou oráculos - e, entre os gregos, até o envio de embaixadas sagradas aos jogos de Olímpia, Delfos ou Delos, as chamadas teorias -, quando revestida de caráter, por assim dizer oficial, ou seja, quando destinada a cortejos locais de iniciativa do Estado ou de igrejas constituídas, ganhava estrutura sujeita a regras determinadas, para receber então o nome particular de procissão.
O esquema das procissões, logo adotado pelo cristianismo quando de sua institucionalização como igreja, sob o conceito do katholikós, universal, ia ganhar com a organização de suas regras litúrgicas diversas variantes: procissões de bênção, para dias determinados, como Domingo de Ramos; procissões votivas, como a celebração da Assunção (recebimento da Virgem maria no céu); procissões de trasladação, para acompanhar a mudança pública de imagens ou relíquias; procissões de peregrinação, à volta de grutas milagrosas como a de Lourdes, na frança, ou do Santuário de Fátima, em Portugal; e, por fim, procissões comemorativas de milagres ou acontecimentos da vida religiosa ou civil.
Pois essas procissões, que afinal reproduziam, em âmbito limitado, as livres caminhadas dos antigos a seus locais de culto, estavam destinadas a evoluir para certa teatralização religiosa que, em menos de um milênio, ia permitir a volta das velhas peregrinações de fé coletiva à sua origem popular, acrescida de um nítido sentido de festa, no que viria a se chamar, em Portugal, de círios e romarias.
TINHORÃO, José Ramos. Festa de negro em devoção de branco: do carnaval na procissão ao teatro no círio. São Paulo: UNESP, 2012. p. 3-6.
NOTA: O texto "A memória pagã das romarias" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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