"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Oligarquias, coronéis e jagunços na República Velha

Sertão da Bahia, 1913. Pretendendo dominar o Município de Brotas, dominado pelos Matos, o coronel Militão Rodrigues Coelho, chefe político de Barra do Mendes, mobiliza um bando de homens armados, ameaça invadir a cidade e consegue que o governador do estado baixe em 50% o seu imposto particular. No ano seguinte, com mais de duzentos homens, ocupa a cidade, enquanto o povo foge apavorado. Vítor Matos, irmão do coronel Horácio de Matos, é assassinado por jagunços. Estes ficam sob a proteção do coronel Manoel Fabrício, chefe da cidade vizinha de Campestre, que tenta, sem sucesso, aniquilar o resto da família Matos.

Como o governador não age com energia, os Matos atacam Campestre, derrotando os capangas de Militão e os soldados e praças do Exército que lutaram ao seu lado. Só então o governador J. J. Seabra envia um emissário para um acordo. Em 1916, a luta recomeça. O coronel  Militão foge da região e Barra do Mendes é ocupada pelas forças de Horácio de Matos. Meses depois, este foi nomeado delegado regional da zona de Lavras, à qual pertenciam todos aqueles municípios. Era a legalização do predomínio absoluto do coronel Horácio de Matos.

Lutas como essas ocorriam frequentemente e continuavam por anos a fio. Eram verdadeiras guerras declaradas entre coronéis (e entre oligarquias) em disputa pelo poder nos municípios (e nos estados). Exemplos da importância, que essas lutas oligárquicas podiam ter, foram a Revolta Federalista do Sul, as reações das oligarquias às juntas governistas criadas por Deodoro ou a invasão de Cuiabá, em 1906, pelo coronel Generoso Ponce, que depôs e assassinou o coronel Totó Paes. Tais lutas também se refletiam no Congresso, onde os representantes desses grupos inimigos disputavam quem ficaria à sombra do governo federal.

[...]

Nos municípios dominavam os coronéis: eram proprietários de terras, comerciantes e até industriais e bacharéis, cujo título militar persistiu mesmo após a extinção da Guarda Nacional em 1918, em função do poder que exerciam sobre seus parentes, agregados e moradores dos distritos e municípios. Nos estados, formavam-se as oligarquias: grupos poderosos constituídos pelas famílias e chefes políticos das principais regiões, como os Montenegro no Pará, os Benedito Leite no Maranhão, os Acióli no Ceará, os Pedro Velho no Rio Grande do Norte e assim por diante. Não havia estado que não fosse dominado por algumas dessas famílias, quase todas latifundiárias.

O caso mais importante, em termos nacionais, era o do Estado de São Paulo, cujos chefes políticos dominavam a Comissão Executiva do Partido Republicano Paulista, o mais poderoso partido estadual da época. Junto com os chefes do Partido Republicano Mineiro, ele controlou o Executivo e o Legislativo federais durante toda a República Velha. Revezando-se continuamente no poder, o PRP e o PRM “fizeram” nove dos onze presidentes eleitos até 1930. Por esse motivo, o sistema de dominação implantado ficou conhecido como política do café-com-leite.

Por que poucas famílias continuavam com tanto poder? Como elas conseguiam mantê-lo sem ser contestadas?

“João Soares estava com a razão: política só se ganha com muito dinheiro. A começar com o alistamento, que é trabalhoso e caro: tem-se que ir atrás de eleitor por eleitor, convencê-los a se alistarem e ensinar tudo, até a copiar o requerimento. Cabo de enxada engrossa as mãos – o laço de couro cru, machado e foice também. Caneta e lápis são ferramentas muito delicadas. A lida é outra: labuta pesada, de sol a sol, nos campos e nos currais [...] Ler o que? Escrever o que? Mas agora é preciso: a eleição vem aí e o alistamento rende a estima do patrão, a gente vira pessoa.” (PALMÉRIO, M. Vila dos Confins. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 62)

“Essa ascendência” – explica Vitor Nunes Leal – “resulta muito naturalmente da sua qualidade de proprietário rural. A massa humana que tira a subsistência de suas terras vive no mais lamentável estado de pobreza, ignorância e abandono. Diante dela, o coronel é ‘rico’”. (LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975. p. 24)

De fato, a grande propriedade continuava predominando em todos os estados. Exceção eram as áreas próximas às maiores cidades, onde se desenvolveram a média e a pequena propriedade, que produziam para o mercado interno. Ou então os pequenos cultivos feitos em inúmeras áreas do país pelos posseiros – aqueles que ocupam a terra e a beneficiam, mas por uma série de dificuldades não registram a sua propriedade. Tais cultivos, embora responsáveis por significativa parcela do abastecimento da população, raramente foram protegidos pelos governos brasileiros e tendem a ser engolidos pela expansão das grandes propriedades.

A maioria da população rural era de colonos, meeiros e posseiros, sem propriedade e sem leis que os protegessem, obrigados ao trabalho mal recompensado nas terras dos fazendeiros, sem instrução, vivendo na miséria. Dependiam dos coronéis para quase tudo: tratamento médico, licença para a plantação de uma roça, obtenção de um passe nas estradas de ferro. Até para escrever uma carta precisavam de sua ajuda.

O coronel era o chefe da “grande família” formada pelos parentes e os cabras: era o “protetor”, o “compadre”, o “juiz”, o organizador das festas [...].

Ao seu lado, estavam o médico, o advogado, o professor, o tabelião e o padre, responsáveis pelas consultas grátis, pela assistência jurídica e pelo conforto da religião. [...]

[...]

Um dos principais objetivos do coronel era o controle do voto de seus dependentes. Pelo “voto de cabresto”, ele garantia para seus candidatos o apoio dos que lhe deviam favores. Como um animal doméstico, o eleitor era conduzido de acordo com a vontade de quem o submetia.


As próximas eleições... “de cabresto”. Na charge de Storni para a revista Careta (1927), uma das mais famosas fraudes eleitorais da República Velha, o voto de cabresto, recebe a devida crítica. O eleitor recebia um papel com o nome do candidato escolhido pelo coronel da região, e apenas o depositava na urna.

Ella – É o Zé Besta?
Elle – Não, é o Zé Burro!

[...]

Muitos desses homens submissos transformavam-se em terríveis capangas ou jagunços para servir a seus patrões. Matando os adversários políticos, expulsando os moradores indesejáveis, ameaçando os eleitores indecisos, arrombando urnas eleitorais, eram uma garantia do poder dos coronéis. Afinal de contas, quando o coronel estava na oposição, era preciso ter à mão uma força armada para se prevenir contra a intervenção das forças policiais do governo estadual. E, estando na situação, precisava defender-se das acusações, quase sempre, verdadeiras, de falsificação das atas eleitorais (as “eleições a bico-de-pena”, quando as atas já vinham prontas, com o “resultado”), de alistamento de defuntos ou de terem comprado os componentes da mesa eleitoral.


O jagunço, Aldemir Martins

O domínio do coronel tornava-se incontestável em sua fazenda. Estendia-se ao município, se ele era o chefe dos fazendeiros dos distritos rurais. Os chefes municipais, por sua vez, se agrupavam em torno dos líderes da cidade mais importante de uma região, que elegiam os chefes políticos regionais como os Osório, em Pelotas, os Vargas, em Missões, os Flores da Cunha, em Livramento, todos do Rio Grande do Sul. Finalmente, os mais fortes destes eram os mandões do partido no estado. Formavam a oligarquia estadual e controlavam o governo.

Mas o pode dos chefes políticos municipais não se originava apenas da dominação exercida em sua região. Para alcançar a liderança local, precisavam do apoio do governo do estado. Só assim asseguravam o auxílio financeiro para realização de obras públicas municipais e pagamento de funcionários, a ajuda das forças policiais do estado e o controle dos empregos públicos nos municípios. Sem isso, seria difícil para eles manterem-se no poder durante muito tempo. Havia uma dependência mútua entre os chefes municipais e os chefes estaduais, mas estes últimos formavam o lado mais forte: como o governo estadual controlava o grosso dos recursos, os coronéis e chefes municipais viam-se obrigados, na maioria das vezes, a se curvar as suas determinações, caso quisessem continuar mandando. Daí o interesse de muitas facções de um mesmo município em se aliar com a oligarquia estadual dominante. Daí também se dizer na época que o maior mal possível de acontecer a um chefe político municipal era ter o governo, federal ou estadual, como adversário...

O Governo Federal, é claro, aproveitava-se do controle dos votos dos trabalhadores do campo, a ponto de um presidente da República, Campos Salles, ter-se preocupado em regularizar as ligações políticas entre o governo federal, o estadual e os coronéis. [...]


ALENCAR, Francisco [et alli]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 250-253.

NOTA: O texto "Oligarquias, coronéis e jagunços na República Velha" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário