Bem diferente também era a noção de pudor que as viagens ultramarinas revelaram aos europeus. Singrando mares e chegando a terras que lhes eram desconhecidas, encontraram povos que tinham outras noções quanto à nudez, às funções corporais ou à sexualidade. Aos olhos dos europeus, os "selvagens" não tinham sido ungidos pela Graça divina. E seria considerado ofensivo colocar em dúvida os comportamentos cristãos para seguir o exemplo dos índios. Mas a diferença não estava só entre cristãos e bárbaros. Mesmo na Europa, pudor de sentimentos & pudor corporal tinham significados diferentes entre os diferentes grupos: ricos ou pobres, homens ou mulheres.
Sauna, Pekka Halonen
O banho, por exemplo. Ele gozou de grande prestígio entre as civilizações antigas e estava associado ao prazer: vide as termas romanas. Durante o Império, os banhos públicos multiplicaram-se e muitos se tornaram locais de prostituição. Eram os chamados "banhos bordéis", onde as "filhas do banho" ofereciam seus serviços. Os primeiros cristãos, indignados com a má frequentação, consideravam que uma mulher que fosse aos banhos públicos poderia ser repudiada. O código de Justiniano deu respaldo à ação. Concílio após concílio, tentava-se acabar com eles. Proibidos aos religiosos, sobretudo quando jovens, abster-se de banho se tornou sinônimo de santidade. Santa Agnes privou-se deles toda a vida. Ordens monásticas os proibiam aos seus monges, O batismo cristão, antes uma cerimônia comunitária de imersão, transformou-se numa simples aspersão.
Contudo, é importante lembrar que, apesar dos prazeres oferecidos pela água, gestos de pudor estavam sempre presentes. Durante a Idade Média, homens e mulheres não se banhavam juntos, salvo nos prostíbulos. Ambos cobriam as partes pudendas. Eles, com um tipo de calção. Elas, com um vestido fino e comprido. Regulamentos austeros coibiam horários e orientavam o uso das estufas. Era terminantemente proibido, por exemplo, que homens entrassem nos banhos femininos e vice-versa. Não faltam ilustrações - em miniaturas e gravuras - sobre o voyeurismo, capaz de quebrar as severas regras que controlavam tais espaços.
Segundo alguns autores, enquanto nossos índios davam exemplo de higiene, banhando-se nos rios, os europeus eram perseguidos pelas leis das reformas católica e protestante que lhes interditavam nadar nus. A visão de rapazes dentro dos rios, mergulhando ou nadando em trajes de Adão, causava escândalo, quando não penalidades e multas.
A nudez e a poligamia dos índios ajudavam a demonizar sua imagem. Considerados não civilizados, a tentativa dos jesuítas em cobri-los resultou, muitas vezes, em situações cômicas, como a relatada por padre Anchieta:
"Os índios da terra de ordinário andam nus e quando muito vestem alguma roupa de algodão ou de pano baixo e nisto usam de primores a seu modo, porque um dia saem com gorro, carapaça ou chapéu na cabeça e o mais nu; outro dia saem com seus sapatos ou botas e o mais nu. [...] e se vão passear somente com o gorro na cabeça sem outra roupa e lhes parece que vão assim mui galantes."
A discussão sobre a nudez dos selvagens alimentava outra: o que teria vindo antes: a roupa ou o pudor? Adão que o dissesse... Teve que se cobrir com uma folha de parreira, assim que foi expulso do paraíso. Eis por que os missionários impunham roupas aos índios. Inspirados pelas "descobertas", vários tratados sobre indumentária e costumes foram então escritos na Europa. A ideia era a de que se cobrissem os nus, retirando-lhes as armas da sedução. Mas que, também, se atacasse os que se cobriam com tecidos caros, perucas pomposas e maquilagem, sinônimo de luxúria e vaidade. Daí a importância da modéstia como sinônimo de pudor.
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011. p. 18-20.
NOTA: O texto "Pudor de sentimentos & pudor corporal: significados na Época Moderna" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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