"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 4 de janeiro de 2014

Mudanças sociais e desafios culturais nos anos 1920 nos Estados Unidos

Apesar do abafado clima intelectual e social da década de 1920, as mudanças sociais e econômicas continuaram produzindo protesto social e cultural. Uma geração de escritores desencantados, como John dos Passos, Sinclair Lewis, F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Gertrude Stein, criticou a futilidade da sociedade de consumo, as atitudes repressivas do Estado e das corporações e as francas limitações à liberdade individual e aos direitos sociais no país.

Reações à “sociedade moderna” não vieram somente da esquerda: americanos rurais e religiosos revigoravam a defesa de valores tradicionais. As religiões evangélicas, que insistiram na leitura fundamentalista da Bíblia, ganharam bastante apoio em alguns estados como Tennessee, em campanhas anti-seculares para, por exemplo, banir o ensino da Teoria da Evolução, de Charles Darwin.

O movimento antialcoólico convenceu o governo federal a proibir por lei, em 1920, a fabricação e venda de álcool (a proibição durou 13 anos), o que acabou fortalecendo o crime organizado e dando origem a um próspero mercado negro.

Uma tenebrosa ramificação da “defesa da tradição” foi o ressurgimento da Ku Klux Klan (KKK). Falida desde o fim da década de 1870, renasceu em 1915, no ambiente chauvinista dos tempos de guerra. Um dos primeiros produtos da nova indústria do cinema, o filme Nascimento de uma nação (1916), do diretor D. W. Griffiths, glorificou abertamente esse grupo racista. Preocupado primariamente com negros, a KKK ampliou sua mensagem de ódio e violenta intimidação nos anos 1920, denunciando imigrantes (especialmente católicos e judeus) e todas as forças (socialistas e feministas) que ameaçaram a “liberdade individual” e “o jeito americano de viver”. Até 1925, o grupo conseguiu recrutar quatro milhões de membros, muitos dos quais mulheres e “cidadãos respeitáveis” dos estados do Norte. Apesar do seu extremismo e posterior declínio no fim da década, o grupo, sem dúvida, refletiu sentimentos nativistas bem enraizados na sociedade americana.

A modernidade na comunidade negra expressou-se numa série de movimentos e tendências políticas radicais nesses anos. Como outros americanos, alguns negros também foram influenciados por ideias como anticolonialismo e solidariedade entre trabalhadores, decorrentes dos movimentos socialistas e da inspiração da Revolução Russa. Em 1919, o movimento “Novo Negro”, do socialista Hubert Harrison, visionou a emancipação do afro-americano como um projeto a ser levado a cabo por uma aliança multirracial e militante, ao contrário das campanhas meramente legais da NAACP. Embora os movimentos socialistas no país tenham ignorado ou marginalizado a luta contra o racismo, ideias em favor da sindicalização e da classe trabalhadora podiam ser amplamente encontradas nas páginas da imprensa popular negra.

A decepção diante das traições das promessas do governo americano em favor da autodeterminação e democracia para os oprimidos, depois da Primeira Guerra, impulsionou muitos negros ativistas em direção ao que chamavam de “nacionalismo negro” (black nationalism). A Associação Universal para o Melhoramento dos Negros (UNIA em inglês), fundada pelo imigrante jamaicano Marcus Garvey, argumentou que negros precisavam formar um movimento separatista para obter a liberdade. Em 1921, Garvey proclamou:

“Em todo lugar, nós ouvimos o grito de liberdade. [...] Desejamos uma liberdade que vai nos elevar ao padrão de todos os homens [...] liberdade que vai nos dar chance e oportunidade de subir até o ápice pleno da nossa ambição e que nós não conseguimos em países onde outros homens predominam.”

O líder negro rejeitou a assimilação como também a aliança com brancos e fomentou orgulho na “raça negra”. A UNIA montou uma rede de supermercados e outros negócios tocados por negros e aconselhou afro-americanos a voltarem para África, onde eles poderiam criar uma “nova sociedade”. A organização e sua influência perderam força quando Garvey foi condenado por fraude em 1923. Mas o apelo ao “nacionalismo negro” nas cidades do Norte, por alguns anos, mostrou a profundidade dos anseios da população negra por alternativas políticas e teria influência significativa mais tarde em movimentos sociais negros nos Estados Unidos e no Caribe.


Vida noturna, Archibald John Motley

Nos anos 1920, o chamado “renascimento do Harlem” – o florescimento da arte e pensamento centralizado em um grupo de escritores, artistas, músicos e intelectuais negros de Nova York – explorou as possibilidades da ação cultural e política por meio de uma consciência positiva das heranças e tradições afro-americanas. Esses artistas inovadores desenvolveram a ideia de que a vida intelectual e artística era capaz de valorizar os afro-americanos, desafiar o racismo e promover políticas progressistas no país. Escritores como Jean Toomer, Zora Neale Hurston, Langston Hughes, James Weldon Johnson e Claude McKay e artistas plásticos como Richard Nugent e Aaron Douglas misturaram feições modernas e tradicionais de expressão artística, resgatando história e tradições da comunidade negra. Inspiraram gerações de artistas e ativistas pelos direitos civis e tiveram influência enorme na cultura afro-americana ao longo de todo o século XX.


Sean Purdy. Mudanças sociais e desafios culturais nos anos 1920. In: KARNAL, Leando [et alli]. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2010. p. 203-205.


NOTA: O texto "Mudanças sociais e desafios culturais nos anos 1920 nos Estados Unidos" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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