"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 1 de fevereiro de 2014

O universo mental e a cultura popular na Idade Média

A Igreja medieval tentou tornar o mundo o mais simbólico possível, somente decifrável pelos homens de fé. Somente os clérigos sabiam interpretar o mundo dos homens porque ele, segundo a pregação religiosa, havia sido criado como reflexo do mundo celestial. Uma vez que nosso mundo foi criado à semelhança da Cidade de Deus, somente aqueles que conheciam o mundo celestial podiam entender este em que vivemos. Dessa forma os clérigos definiam como deveria ser o comportamento humano, criavam regras de comportamento moral e social e valores culturais.

Assolados por um Demônio sempre à espreita do erro, obrigados a viver entre as muitas tentações condenadas pela Igreja - por exemplo, não pagar suas obrigações -, os pobres não podiam partir para a vida contemplativa, voltada apenas para as orações, para se livrarem dos pecados. Também não dispunham de recursos para fazer grandes doações à Igreja e assim livrarem-se do castigo do inferno. Era um cenário de terror.

Devemos nos perguntar, porém, em que medida as pessoas realmente se envolviam nessa pregação religiosa, ou apenas toleravam essa doutrinação, uma vez que ela era feita pela classe dominante; em que medida ainda preservavam suas tradições pagãs ou passaram de fato a acreditar somente nos valores católicos. Alguns aspectos da cultura popular nos indicam que havia reação a essa imposição cultural.

Uma das características da cultura oficial era o seu tom de seriedade. A crença numa providência divina sinistra; o papel dominante ocupado pela ideia de pecado; a necessidade do sofrimento para a redenção humana eram fatores que criavam um ambiente de preocupação constante. A opressão e a intimidação sofridas pelos pobres consagravam a seriedade. O tom sério afirmou-se como a única forma de expressar a verdade e tudo o que era importante e bom.

O riso, por sua vez, acabou sendo visto como o oposto: a expressão do que era mau. O riso foi declarado como uma emanação do diabo. O cristão deveria conservar a seriedade sempre, para demonstrar seu arrependimento e a dor que sentia na expiação dos seus pecados. É interessante notar que nas histórias infantis medievais essa articulação entre bem e seriedade, mal e riso é fortemente representada. A mocinha que é boa sofre sempre e é tristonha; a bruxa ou feiticeira que é má está sempre dando gargalhadas. Certamente que, seguindo o raciocínio moral da Idade Média, no final da história o sofrimento será recompensado e o riso castigado.

Por ter sido proibido, condenado como um pecado, o riso tornou-se uma forma de reação contra a opressão. Fora da ideologia oficial, o culto ao riso, à alegria, aos prazeres acontecia em, pelo menos, duas festas populares: a festa dos loucos e a festa do asno. Eram festividades realizadas nas ruas nas quais as pessoas se permitiam todas as transgressões possíveis: excessos na comida, embriaguez, gestos obscenos, nudez e, logicamente, muito riso.


A luta entre o carnaval e a quaresma (detalhe), Pieter Bruegel

A Igreja tentava combater esses rituais fazendo coincidir as festas religiosas com as festas pagãs, com o objetivo de cristianizar os cultos cômicos. A princípio a festa dos loucos era realizada dentro das igrejas. Quando foi proibida, passou a se realizar nas tavernas e nas ruas.

A tradição mais antiga permitia o riso e as brincadeiras no interior das igrejas durante a celebração da Páscoa. O padre, do púlpito, fazia brincadeiras e contava histórias divertidas para provocar o riso nos fiéis, depois do período de abstinência que precedia a Páscoa. Esse riso era entendido como uma forma de renascimento feliz após o longo tempo de jejum. As brincadeiras e as histórias usadas pelo padre para fazer os paroquianos rir fazem referência essencialmente à vida material e corporal. Assim como o riso, estavam autorizadas a ingestão de carne e a vida sexual, também proibidas durante o jejum.

Ao que parece, facções do clero organizavam festas exclusivas, sem a participação de leigos, onde os excessos de alimentos e de bebidas não eram condenados. Realizavam-se festas por ocasião da consagração de uma igreja, quando era rezada a primeira missa. Organizavam-se banquetes em honra dos protetores ou doadores enterrados na igreja, quando se bebia à saúde do morto. "Os dominicanos espanhóis bebiam à saúde de seus santos protetores sepultados nas igrejas, pronunciando o voto ambivalente típico: viva el muerto." (BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento.São Paulo: Hucitec/EUB, 1987. p. 69.)

Muitas festas católicas acabaram ganhando feições pagãs. Por exemplo, São Martim e São Miguel eram vestidos com roupas inspiradas no deus grego Baco, pois eram considerados protetores dos produtores de vinho. Na festa de São Lázaro vários costumes pagãos eram retomados: procissão de animais, o uso de fantasias, danças em praça pública. Todos esses são exemplos que comprovam que a cultura católica não sufocou traços de outras culturas, tendo havido contaminação da cultura pagã até mesmo nas festividades da própria Igreja.

Durante a festa dos loucos vigorava uma inversão social. As pessoas invertiam seus hábitos comuns: abusavam da bebida e da comida, perdiam o pudor, travestiam-se, riam abandonando a atitude geralmente série. Usavam as roupas do avesso e colocavam as calças na cabeça.


Dois tolos do carnaval, Pieter Bruegel

Mas, o que é mais sério, havia uma inversão do papel que os estamentos sociais representavam. Era feita a eleição de um abade, de um bispo, de um arcebispo e de um papa para provocar o riso nas pessoas. Esses clérigos cômicos realizavam missas solenes. Escolhiam-se reis e rainhas, que também deveriam rir. A ordem social, defendida como natural pelos poderosos, era subvertida nos dias de festa. Se na maior parte do ano os camponeses aceitavam com submissão o reinado de terror imposto pelos senhores, durante as festas eles revelavam seu descontentamento, sua indignação com a exploração a que eram submetidos. É como se, durante esses pandemônios públicos, os servos revelassem a consciência que tinham da injustiça social em que viviam.

As festas populares se opunham ao imobilismo social que definia o lugar de cada um na sociedade de acordo com o seu nascimento, sem oferecer a possibilidade de mudança. Também se opunham à rígidez conservadora do regime e das concepções estabelecidas, que não podiam ser contestadas.


A literatura oficial era sacra, de louvor a Deus. Contava a vida dos santos, escrevia e reescrevia os textos bíblicos, traduzia as regras de comportamento a ser seguidas pelos católicos. Os textos filosóficos tentavam entender e explicar os mistérios divinos. A literatura greco-romana ficava devidamente enclausurada nos mosteiros, acessível a membros do alto clero.

Bem diferente era a literatura difundida entre os populares. Acompanhando o sentido das festas populares, a literatura paródica subvertia o caráter dos textos sagrados, criava paródias para serem usadas na festa dos loucos, ou simplesmente para criar oportunidades de riso. [...]

A literatura paródica tinha um objetivo de recreação, era para ser lida em momentos de festa, nos quais predominava um clima de liberdade e de possibilidade de mudança da ordem estabelecida. Para os parodistas, em tudo havia comédia: na religião, na sociedade, no universo, na história. A exaltação do lado cômico funcionava, mais uma vez, como a negação e a repulsa à seriedade imposta pela cultura oficial. Nada mais lógico do que o fato de que a grande maioria das paródias se fazia sobre textos sagrados.

[...]

As versões cômicas das orações católicas mais conhecidas, como o Pai-Nosso, a Ave-Maria e o Credo, são numerosas. A partir do século XI todas as características da doutrina e dos cultos oficiais são parodiados. São conhecidas a Liturgia dos bêbados, a Liturgia dos jogadores, a Liturgia do dinheiro, o Evangelho do marco de prata, o Evangelho dos beberrões. Enfim, nada escapava dos parodistas.

[...]

Como reagia o poder diante de tanta irreverência? Ao que parece havia a necessidade de fazer concessões a esses deboches. Permitir essas transgressões periódicas, devidamente circunscritas nos dias de festa, era um pequeno preço a ser pago pelos longos dias da maior parte do ano, em que os populares se submetiam ao controle e, o mais importante, aos interesses da classe dominante.

No final do Império Romano o clero católico havia condenado as apresentações teatrais por considerá-las imorais e violentas. Dessa forma o teatro romano deixou de ser encenado. Todavia, foram os próprios clérigos que trouxeram o teatro de volta, aproveitando-se das festas religiosas para encenar peças que retratavam cenas bíblicas.

Na Alta Idade Média as encenações eram feitas dentro das igrejas. O aumento de público levou as apresentações para a praça pública [...]. De um lado do palco ficava o Paraíso e do outro a boca de um dragão representava o Inferno. Reproduzia-se, assim, o destino do ser humano segundo a visão cristã [...].

As encenações em praça pública eram feitas nos dias de festa, sobretudo no Natal e na Páscoa, e a mesma história era repetida várias vezes. Eram apresentadas cenas bíblicas misturadas a referências da vida cotidiana, para que os espectadores pudessem entender o simbolismo das ideias religiosas.

Mas, ao ser levado para as ruas, o teatro sofreu mudanças. Na praça, ao ar livre, foram aparecendo outros temas, além dos religiosos. Na Baixa Idade Média, representações que falavam do cotidiano, que faziam críticas às autoridades, que satirizavam os valores sociais foram se tornando cada vez mais populares, enquanto o clero perdia o controle sob a produção teatral. Os padres afastaram-se e as apresentações teatrais acabaram proibidas novamente.

PETTA, Nicolina Luiza de; OJEDA, Eduardo Aparício Baez. História: uma abordagem integrada. São Paulo: Moderna, 2001. p. 41-43.

NOTA: O texto "O universo mental e a cultura popular na Idade Média" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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