[...] até o período em que se deu
a Independência, vivia-se na América portuguesa num cenário com algumas
características invariáveis: a família patriarcal era o padrão dominante entre
as elites agrárias, enquanto, nas camadas populares rurais e urbanas, os
concubinatos, uniões informais e não legalizadas e os filhos ilegítimos eram a
marca registrada. A importância das cidades variava de acordo com sua função
econômica, política, administrativa e cultural. Alguns números ilustram os
contingentes demográficos: São Paulo contava com cerca de 20 mil habitantes,
Recife, com 30 mil, Salvador, com 100 mil, e o Rio de Janeiro, graças à vinda
de portugueses seguindo d. João VI em seu exílio tropical, era a única a contar
com mais de 100 mil residentes. A população urbana, contudo, crescia,
alimentando uma forte migração interna (campo-cidade) e externa (tráfico
negreiro). Apesar dos problemas de abastecimento, higiene e habitação, as
cidades atraíam pela enorme oportunidade que ofereciam de mobilidade social e
econômica.
Quando a América ainda era portuguesa, cochichos, piscadelas e sinais com os dedos: sedução pela janela. Huma história, 1822. Henry Chamberlain
Com todas essas transformações, é
bom não perder de vista que, de acordo com vários viajantes estrangeiros que
aqui estiveram na primeira metade do século XIX (Saint-Hilaire, Tollenare,
Debret, Rugendas, Koster, Luccock, Maria Graham), a paisagem urbana brasileira
ainda era bem modesta. Com exceção da capital, Rio de Janeiro, e de alguns
centros onde a agricultura exportadora e o ouro tinham deixado marcas – caso de
Salvador, São Luís e Ouro Preto -, a maior parte das vilas e cidades não passava de pequenos burgos isolados com casario baixo e discreto, como São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.
Mesmo na chamada corte, o Rio de Janeiro, as mudanças eram mais de forma do que de fundo. A requintada presença da Missão Francesa pode ter deixado marcas na pintura, ornamentação e arquitetura. Mas as notícias dos jornais Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822) e Idade de ouro do Brasil (1811-1823), órgãos da imprensa oficial, ou mesmo a inauguração do Real Teatro de São João, onde se exibiam companhias estrangeiras e onde soltavam seus trinados artistas como a graciosa Baratinha ou as madames Sabini e Toussaint, não eram suficientes para quebrar a monotonia intelectual. Além do popular entrudo e dos saraus familiares, o evento social mais importante continuava a ser a missa dominical.
O importuno, Almeida Junior
Os viajantes que por aqui passaram na primeira metade do século XIX concordavam num ponto: "a moralidade reinante no Rio de Janeiro se apresenta bem precária", como dizia o mineralogista inglês Alexander Caldcleugh. Já o francês Freycinet queixava-se dos vícios de libertinagem. Afinal, tratava-se de um país onde "não e difícil encontrar-se todo tipo de excessos". E seu conterrâneo Arago cravava: "o Rio era uma cidade onde os vícios da Europa abundavam". Eles tomavam como vícios os concubinatos e adultérios, correntes sobretudo nas camadas mais pobres da população, em que se multiplicavam as "teúdas e manteúdas". Para a chamada "poligamia tropical" não faltaram explicações associadas ao clima quente, como a dada por J. K. Tuckey:
"Entre as mulheres do Brasil, bem como as de outros países de zona tórrida, não há intervalo entre os períodos de perfeição e decadência; como os delicados frutos do solo, o poderoso calor do sol amadurece-as prematuramente e, após um florescimento rápido, deixam-nas apodrecer; aos quatorze anos tornam-se mães, aos dezesseis desabrochou toda a sua beleza, e, aos vinte, estão murchas como as rosas desfolhadas no outono. Assim a vida das três destas filhas do sol difere muito da de uma europeia; naquela, o período de perfeição precede muito o de perfeição mental, e nesta, uma perfeição acompanha a outra. Sem dúvida, esses princípios influenciam os legisladores do Oriente em sua permissão da poligamia; pois na zona tórrida, se o homem ficar circunscrito a uma mulher precisará passar quase dois terços de seus dias unido a uma múmia repugnante e inútil para a sociedade, a não ser que a depravação da natureza humana, ligada à irritação das paixões insatisfeitas os conduzisse a livrar-se do empecilho por meios clandestinos. Essa limitação a uma única mulher, nas povoações europeias da Ásia e das Américas, é uma das principais causas de licenciosidade ilimitada dos homens e do espírito intrigante das mulheres. No Brasil, as relações sexuais licenciosas talvez igualem o que sabemos que predominou no período mais degenerado do Império Romano."
Outra explicação, dessa vez dada pelo conde de Suzanet, em 1825, afirmava que as mulheres brasileiras gozavam de menos privilégio do que as do Oriente. Casavam-se cedo, logo se transformando pelos primeiros partos, perdendo assim os poucos atrativos que podiam ter tido. Os maridos apressavam-se em substituí-las por escravas negras ou mulatas. "O casamento é apenas um jogo de interesses. Causa espanto ver uma moça, ainda jovem, rodeada de oito ou dez crianças; uma ou duas, apenas, são dela, outras são do marido; os filhos naturais são em grande número e recebem a mesma educação dos legítimos. A imoralidade dos brasileiros é favorecida pela escravidão e o casamento é repelido pela maioria, como um laço incômodo e um encargo inútil. Disseram-me que há distritos inteiros em que só se encontram dois ou três lares constituídos. O resto dos habitantes vive em concubinato com mulheres brancas ou mulatas."
"Nascer do outro lado dos lençóis" era o eufemismo empregado para designar bastardia. E não foram poucas as famílias assim constituídas. João Simões Lopes, o visconde da Graça, estancieiro, comerciante e chefe do partido conservador em Rio Grande, tinha uma vida nada convencional na segunda metade do século XIX. Casado, mantinha na mesma rua em que morava, três casas abaixo, sua amante. Quando sua esposa deu à luz um filho, quase na mesma semana nascia-lhe outra da "teúda e manteúda" Vicência Ferreira Lira. Teve, com cada uma delas, dez filhos, sendo pai de doze de um primeiro casamento do qual ficou viúvo. O arranjo não causava discórdia. Nas missas de domingo, a legítima esposa ficava de um lado da igreja e a concubina, do outro. Todos muito devotos!
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p. 62-65.
NOTA: O texto "Teúdas e manteúdas no Brasil imperial" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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