"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Os perigos do clima e das doenças no medievo

Um período de temperaturas elevadas interveio durante a Idade Média, e os dois séculos entre os anos 1000 e 1200 foram talvez tão quentes quanto a década de 1990 veio a ser no norte da Europa. Colheitas foram feitas em terras que, por serem tão frios nos verões, um dia tinham sido vistas como inúteis para aragem. As vinhas deram frutos além do atual limite de cultivo de uvas; até o extremo norte da Inglaterra chegou a produzir vinho para beber.

A ilha da Islândia foi ocupada ao primeiro sinal de um período mais quente. Situada no contorno do Círculo Ártico, mas lucrando bastante do aquecimento vindo da Corrente do Golfo, a ilha foi ocupada por alguns religiosos da Irlanda e, depois, em 874, pelos vikings vindos da Noruega. Os vikings sacudiram o norte da Europa exatamente na mesma época em que os árabes islâmicos agitavam o Mediterrâneo, e os maoris ocupavam a Nova Zelândia. Embora os ataques belicosos dos vikings sejam famosos, seus povoamentos foram eficientes e, com o tempo, as cidades e distritos vikings se estenderam desde as cidades de comércio de Kiev e Novgorod, na Rússia, até à costa da França, Escócia, Irlanda, Ilhas Órcadas (ou Orkney), Ilha de Man e Islândia.

Até mesmo a gelada Groenlândia, a maior ilha do mundo, parecia ser um prêmio onde, nesses anos mais quentes, os vikings poderiam pastar suar ovelhas e defumar os peixes que pegavam no mar. No ano 985, pequenos navios zarpavam da Islândia para a Groenlândia com aproximadamente 400 colonizadores, bem como ovelhas, cabras, vacas, cavalos e, provavelmente, pilhas de feno. A maioria eram noruegueses, mas havia um contingente de irlandeses também. Ancorando na costa mais ao sul da Groenlândia, os colonizadores prosperaram no clima cada vez mais quente. No verão, cortavam a grama alta, deixavam-na secar em montes dispostos em fileiras e empilhavam em celeiros de feno, possibilitando alimento suficiente para o rebanho durante o inverno escuro.

A população da Groenlândia cresceu chegando a 4000 ou 5000, em menos de um século e meio. A pequena república viking chegou a ter um convento, um mosteiro, mais 16 igrejas e uma catedral presidida pelo bispo da Groenlândia. Era o tipo de povoamento movimentado do qual suas famílias fundadoras tinham orgulho: parecia provável que duraria por 10.000 anos.

A Groenlândia e a Islândia eram uma ponte de passagem pelo gelado Atlântico Norte; a América estava do outro lado da ponte. Os primeiros desembarques europeus no continente americano foram feitos por expedições vikings exatamente quando a Gronelândia estava sendo ocupada. As mulheres partiram com os colonizadores para a Terra Nova e, segundo dizem, uma das expedições composta de dois navios foi conduzida por Freydis, uma mulher que tinha no machado sua arma pessoal contra os inimigos.


Leiv Eiriksson descobre a América do Norte, Christian Krohg

Nada veio desses povoamentos; os índios americanos não tinham motivos para receber bem os vikings. A terra, com exceção das peles dos animais, não tinha nenhuma mercadoria que empolgasse os comerciantes. Se Cristóvão Colombo, cinco séculos depois, tivesse descoberto essa mesma costa em vez de pisar nos solos das perfumadas Antilhas, ele não seria mais lembrado que os vikings, que construíram cabanas e pastaram seus rebanhos nas margens da Terra Nova.

As estações quentes, após somente alguns poucos séculos, começaram a alterar-se. Até a ilha mediterrânea de Creta entrou numa fase mais fria, por volta do ano 1150. Na Alemanha e Inglaterra, o frio chegou talvez um século depois, e os anos entre 1312 e 1320 foram não só frios como também chuvosos, ao contrário do normal. Como uma boa parte dos grãos tinha de ser reservada para a semeadura do ano seguinte, uma colheita insuficiente impunha fome a muitas pessoas. Em 1316, talvez uma em cada 10 pessoas de Ypres morreu de fome ou subnutrição; em alguns lugares, a carne humana servia de alimento.

Procissões religiosas que aconteciam no oeste da França refletiam as estações ruins. Algumas traziam inúmeras pessoas esqueléticas e descalças, algumas das quais praticamente nuas. Colheitas insuficientes afetavam o abastecimento de roupas baratas, bem como de comida barata, pois os pobres faziam suas roupas da planta do linho, que também sofria com as estações ruins. Na verdade, a terra que normalmente era usada para cultivar o linho poderia ser extremamente necessária para o cultivo de grãos.


Miniatura em um livro de orações do início do século XV. Papa Gregório I (590-604) leva uma procissão em torno da proximidade de Roma, a fim de rezar pelo fim da praga. Em primeiro plano duas vítimas caíram, uma criança e um monge.

Com o passar das décadas, o clima da Groenlândia e do Atlântico Norte ficou mais frio. Os celeiros que antes estavam cheios de feno, agora tinham aberturas de ar. Só três pilhas de feno eram recolhidas, onde antes havia quatro ou cinco. Os navios que se aproximavam, vindos da Europa ou da Islândia, encontravam blocos de gelo flutuando em lugares onde o mar se apresentava aberto, ao contrário de outras épocas. Os colonizadores da Groenlândia esperavam em vão pelos antigos verões de que seus antepassados tanto falavam. As fazendas e as igrejas foram abandonadas. Os jovens eram poucos e casamentos tornaram-se uma raridade. Em 1410, os colonizadores sobreviventes embarcaram em navios que ficavam à espera e rumaram para a Islândia e Noruega. A base europeia nessa terra gelada havia durado menos de 400 anos. [...]

A fase do clima mais quente havia aumentado a taxa de crescimento da população na Europa; entre 1000 e 1250, ela cresceu rapidamente. Em seguida, vieram anos gelados, colheitas mais enxutas e um crescimento mais lento da população. Houve mais anos de fome e mais chance de epidemias. A Europa provavelmente via-se pronta para a Peste Negra.

A Peste Negra de 1348 não foi a única. É provável que tenha atingido a Ásia e a África alguns séculos antes, mas não deixou nenhum registro detalhado de sua casuística. Uma epidemia semelhante atingiu o Império Romano entre 165 e 180 d.C. e indiretamente promoveu o cristianismo, pois muitos romanos ficaram impressionados com a visão dos cristãos dando pão e água às vítimas que se achavam enfermas demais para se moverem. Aproximadamente três séculos depois, outra epidemia, a peste bubônica, veio da Índia. Atingiu Constantinopla em 542 e abriu seu caminho a golpes de foice até a Europa. A maior parte dos que morreram dessa primeira fase da "peste negra" foi condenada dentro de seis dias a partir do momento em que mostravam os primeiros sintomas - dor de cabeça, alta temperatura e o aparecimento na pele de um caroço, aproximadamente do tamanho de um ovo ou de uma laranja pequena. Curiosamente, as vítimas que apresentavam caroços maiores em sua pele tinham pais probabilidade de sobreviver. A China e o Japão também sofreram muitos casos com epidemias que talvez se parecessem com a Peste Negra. Dizem que a cidade chinesa de Kaifeng chegou a perder várias centenas de habitantes durante uma epidemia em 1232. Se a cidade ficou tão arrasada, as áreas rurais a seu redor devem ter sido devastadas de forma semelhante pela doença.


A praga, Arnold Böcklin

Uma peste é como um turista compulsivo: ela cria ânimo quando um novo caminho é aberto. A invasão dos mongóis e sua presença unificadora sobre uma imensa área da Ásia ressuscitou o comércio ao longo das antigas rotas de caravanas e também serviu de entrada para a peste bubônica mover-se para o noroeste, em direção à Europa. Nos portos europeus, os ratos e as pulgas foram os portadores da peste. Após chegar à Europa em 1348, ela se espalhou rapidamente. Algumas cidades - Paris, Hamburgo, Florença, Veneza - perderam metade de sua população ou mais. Os vilarejos tinham mais chance de escapar da infecção. Ela se espalhava lentamente no inverno e, rapidamente, no verão. No total, talvez 20 milhões de europeus tenham morrido, ou uma em cada três pessoas. O monstro das pestes, a Peste Negra foi seguida em intervalos por pestes de menor vulto.

A escassez de alimentos das primeiras décadas foi substituída pela escassez de mão-de-obra. As terras aráveis já não faltavam. Em algumas regiões da Alemanha, havia mais vilarejos abandonados do que habitados, e os campos que um dia soavam alto com trabalhadores na colheita estavam agora cobertos de mato e de silêncio.

A Idade Média na Europa é geralmente considerada como tendo ido de 500 a 1500 d.C. Diferindo-se dos mil anos anteriores e dos 500 anos seguintes, a Idade Média foi mais introspectiva e menos fascinada com as conquistas individuais. O fato de essa era ter alcançado menos que o Império Romano, em termos materiais, não foi motivo de decepção. A maioria dos cristãos provavelmente acreditava que os cidadãos romanos, em seus anos de triunfo, eram essencialmente pagãos e que, por isso, muitas de suas conquistas eram de pouquíssimo valor.

Muitos dos líderes intelectuais e políticos da Europa durante a Idade Média não se sentiam inferiores ao Império Romano; acreditavam que estavam construindo seu próprio império, unidos por uma religião em comum. Chamaram-no de Sacro Império Romano e era uma prova inicial da federação europeia das últimas décadas do século XX.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 116-119.

NOTA: O texto "Os perigos do clima e das doenças no medievo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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