"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

As fronteiras da América portuguesa e os tratados de limites

Em 1680, Dom Manuel Lobo, governador do Rio de Janeiro, fundou a Nova Colônia do Santíssimo Sacramento, na margem direita do estuário platino, em frente à cidade de Buenos Aires.


Painel de azulejos representando a fundação da Colônia do Santíssimo Sacramento.
Foto: Fulviusbsas

As fonteiras da América Portuguesa se ampliavam e não por acaso. Interesses econômicos inspiravam essa ação militar: a burguesia mercantil portuguesa queria continuar a colocar no mercado portenho as manufaturas europeias - especialmente tecidos ingleses - e produtos brasileiros, como tabaco, açúcar e algodão.

Esse ativo comércio de contrabando, através do qual se recebia a prata peruana, era acobertado legalmente pelo asiento, que fora suprimido com a Restauração, em 1640.

Os estancieiros gaúchos também tinham interesses na fundação da colônia, uma vez que queriam diminuir a concorrência platina aos seus couros no mercado do Rio de Janeiro.

Para o Estado português, a Colônia do Sacramento era vista como um marco fronteiriço importante, pois permitiria o acesso às regiões mineradoras hispano-americanas, através de Buenos Aires.

Montava-se, na verdade, um centro de contrabando anglo-português: também a burguesia inglesa queria chegar com seus manufaturados, diretamente, ao mercado platino, rompendo o monopólio espanhol. A população de Buenos Aires, por sua vez, estava interessada em "furar" as rotas Santa Fé-Córdoba-Mendonza-Santiago-Valparaiso e Corrientes-Assunção-Potosi-Arica.

"O contrabando de prata e a caça ao índio levaram um crescente número de colonos portugueses à região ocupada atualmente pelos estados do Paraná e de Santa Catarina. Foi dessa forma que surgiram os povoados de Paranaguá (1648) e Curitiba (1668)." ARRUDA, José Jobson. História Total 1: Brasil: Período Colonial. São Paulo: Ática, 1998. p. 105.

Fundação de Curitiba, Theodoro de Bona
[Inicialmente, o povoado de Curitiba, assim como o porto de Paranaguá, esteve sujeito à jurisdição de São Paulo. Apenas em 1853 foi criada a província do Paraná.]

Ameaçada em sua política colonialista, a Espanha vai atacar e ocupar a colônia, a partir de 1680 mesmo.

A Coroa portuguesa desenvolve um grande esforço de colonização no extremo Sul, para acabar com o isolamento da Nova Colônia do Santíssimo Sacramento, cujo povoado luso mais próximo era Laguna, a 150 léguas. Em 1737, na entrada da lagoa dos Patos, é fundado o Forte do Rio Grande de São Pedro.

Fundação da vila do Rio Grande, na lagoa dos Patos, José de Francesco. 
[O povoamento do Rio Grande do Sul pelos portugueses teve início em 1737, quando José da Silva Pais ali desembarcou, à frente de uma expedição. Na entrada do canal da lagoa dos Patos, foi fundada a vila do Rio Grande.]

Como a simples força militar de apoio fosse insuficiente, Dom João V financia, a partir de 1740, a vinda de 4.000 açorianos, dando a cada família um pequeno lote de terra, armas, instrumentos de trabalho agrícola, sementes, alimentos e até vacas e cavalos.

Entre as vilas que surgiram nessa área de ocupação tão original, de lavra do trigo e da vinha em pequenas propriedades, destaca-se Porto dos Casais, atual Porto Alegre, às margens do rio Guaíba.

Tudo isso favoreceu a ocupação do Rio Grande, "o Continente". As estâncias gaúchas já se estendiam pelos vastos pampas. Mas a oeste, na margem esquerda do rio Uruguai, os jesuítas espanhóis voltavam a organizar suas reduções: nasciam os Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai. Novos conflitos se anunciavam.

A superação prática de Tordesilhas e os atritos entre colonos espanhóis e portugueses levaram as coroas ibéricas a negociar tratados de limites:

Tratado de Lisboa (1681). Trata da devolução da Colônia do Sacramento, ocupada pelos espanhóis no ano de sua fundação. O apoio da Inglaterra foi decisivo para Portugal conseguir essa vitória diplomática. A saída das forças espanholas só se dá, efetivamente, em 1683.


Mapa da Colônia do Sacramento feito por Tomás López em 1777

Tratados de Utrecht (1713 e 1715). O primeiro é firmado com a França e decide que o rio Oiapoque seria reconhecido como limite natural entre a Guiana e a capitania do Cabo do Norte. O segundo trata da segunda devolução da Colônia do Sacramento e, obviamente, é assinado com a Espanha. Define-se que o "cerco" espanhol a Sacramento seria delimitado pela distância alcançada por uma bala de canhão, acionado do centro do povoado. A colônia continuaria sendo uma "ilha" portuguesa cercada de espanhóis por todos os lados... A Inglaterra foi mediadora em ambos os tratados. E obteve da Espanha os direitos de asiento e de navio de permiso (um navio por ano nos portos das colônias espanholas) - brecha no bloqueio comercial - no mar das Antilhas.

Tratado de Madri (1750). Este tratado procurou considerar, pela primeira vez, a realidade americana, isto é, levar em consideração a ocupação efetiva realizada aqui. Alexandre de Gusmão, paulista membro do Conselho Ultramarino, defendeu vários princípios vitoriosos. Portugal recebia os Sete Povos e passava a Colônia do Sacramento para o domínio espanhol. O princípio do usucapião (ou uti possidetis, isto é, a terra pertence a quem a ocupa) foi utilizado nos demais casos assim como a demarcação por limites naturais. Rios e canais limítrofes teriam navegação comum e sempre se tentaria isolar as colônias americanas dos conflitos europeus. Portugal garantia o controle da maior parte da bacia amazônica enquanto a Espanha controlava a maior parte da bacia do Prata.

Foi muito mais fácil aos "sereníssimos" reis ibéricos pôr termo às disputas passadas e futuras no papel do que acabar efetivamente com os conflitos e fazer cumprir o tratado. Os interesses no intercâmbio com o Prata, a Guerra Guaranítica, desenvolvida pelos missionários e índios dos Sete Povos contra os exércitos de Portugal e Espanha, onde se destacou o cacique Sepé Tiaraju, morto em 1752, e o envolvimento das coroas em campos opostos, na Guerra dos Sete Anos, a partir de 1758, levaram à anulação das decisões de Madri.

Tratado de Santo Ildefonso (1777). O expansionismo espanhol chegou até a ilha de Santa Catarina. Esse tratado a devolve a Portugal, ficando a Espanha com o Sacramento e com a região dos Sete povos.

Tratado de Badajós (1801). Os gaúchos atacam os Sete povos e expulsam os jesuítas espanhóis. A nova situação de fato pede negociações. Este último tratado do período colonial é, praticamente, um retorno às resoluções de Madri.

ALENCAR, Francisco [et all]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 63-65.


NOTA: O texto "As fronteiras da América portuguesa e os tratados de limites" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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