"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 25 de junho de 2016

Valores burgueses (1870-1914)

M. Jourdain, Le Bourgeois Gentilhomme, o personagem-título da peça de Molière

"Espetacular" parece ser a palavra correta para descrever os diversos aspectos do mundo público burguês. A sociedade nervosa e de estímulos contínuos se manifesta com especial intensidade no centro do capitalismo: o consumo de mercadorias. Através do consumo, ato final e ao mesmo tempo regenerador, é possível perceber traços e valores dessa "nova era".

O próprio ato de consumir mudou de sentido. Se tomarmos a Inglaterra como parâmetro, podemos notar que em Londres se realizava uma transformação que ainda caracteriza a cultura urbana contemporânea: o consumo como prazer, diversão e exercício de sociabilidade.

Durante quase toda a era vitoriana, consumir foi um ato associado ao desperdício, à indulgência e mesmo à imoralidade e à falta de controle. No entanto, desde os anos de 1860, restaurantes, hotéis, teatros, museus, exposições e clubes, associados à expansão do transporte público e ao advento da imprensa popular, alteravam gradualmente esse sentido negativo do ato de consumir.

Como componentes dessa "nova era de consumo" estavam as lojas de departamento. O auge do consumo como um ato refinado e seguro pode ser estabelecido com a fundação da grande loja de atendimento de massa por Harry Gordon Selfridge, na Oxford Street, em 1909. Em sua loja ele introduziu um restaurante, montou vitrines espetaculares, acreditou em uma decoração luxuosa e se amparou em um forte esquema publicitário. Nesse ambiente comercial, Selfridge esperava que seus clientes considerassem as compras não como uma ação econômica, mas como uma celebração social e cultural. Consumo como lazer era a nova tônica do mercado capitalista da virada do século XIX.

O consumo de massa não se limitou aos produtos feitos pelo sistema fabril. Ele se expandiu para áreas que também adotaram um modelo de produção massiva, mas que faziam parte de uma nova fronteira da indústria: a circulação de informações. Durante a guerra hispano-americana em 1898, o New York Journal, de propriedade de William Randolph Hearst, alcançou a cifra de um milhão de leitores. No mesmo ano era lançado na Grã-Bretanha o primeiro jornal popular: o Daily Mail.

Esses jornais apresentavam notícias e artigos curtos, notícias políticas e econômicas eram simples e informativas e os grandes espaços estavam dedicados aos esportes, às "fofocas" e aos assuntos "femininos". No entanto, a imprensa popular americana e depois a inglesa viviam alimentando uma indústria de notícias espetaculares. Campanhas moralizadoras, tragédias sexuais, crimes violentos, o cotidiano em forma de sensações exacerbadas eram os produtos dessa nova indústria que surgia. No novo capitalismo não apenas a mercadoria era o espetáculo, como na Selfridges, mas o espetáculo também era mercadoria, isso garantia as vendas e a publicidade que sustentava os jornais populares.

Em um mundo público tão intenso e espetacular foi impossível não ressignificar o espaço privado burguês. A casa tornou-se um refúgio, misto de isolamento e proteção em uma cidade cheia de ameaças e terrores, e a família, o conjunto de laços sociais estáveis impossíveis de serem mantidos na esfera da multidão urbana.

Acompanhando essa tendência de perceber a casa e a família como locais estáveis, podemos ver como se desenvolveu na sociedade burguesa um profundo fascínio pelo íntimo e pelo subjetivo. Cartas, diários e relatos em primeira pessoa fizeram um profundo escrutínio do mundo subjetivo. O indivíduo passou a ter suas sensações e seus sentimentos colocados em primeiro plano frente a qualquer outro problema.

[...]

A leitura como um ato de intimidade individual permitiu um "fervor" mais pessoal, uma "devoção" privada, rompendo com as mediações das regulamentações eclesiais da Idade Média e criando uma relação secularizada com o livro e a leitura.

A literatura colocou o subjetivo no foco de sua preocupação narrativa, as artes plásticas passaram a investigar as "impressões" visuais, o século XX poderia ser chamado de a "Era do indivíduo". Nesse novo tempo as sensações e os desejos mais íntimos, progressivamente, irão interagir com a sociedade da mercadoria-fetiche e se tornarão parte integrante do mercado capitalista.

PARADA, Maurício. Formação do mundo contemporâneo: o século estilhaçado. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2014. p. 25-7. (Série História Geral)

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