A expulsão do jardim do Éden, Masaccio
[...] os velhos sistemas de valores foram destronados, os novos valores ainda possuíam um caráter rudimentar e inseguro do ponto de vista do conjunto da sociedade. A procura de uma vida verdadeira e bela, com base em modelos judaico-cristãos, gregos e romanos, se confrontava com a brutalidade da vida cotidiana, que marcou a realidade da época do Renascimento.
Essa brutalidade era expressão da crise feudal. Os poderes tradicionais da Igreja e da nobreza feudal estavam abalados pelas transformações econômicas e sociais, mas os novos poderes ainda não tinham se firmado.
O aparecimento das relações burguesas de produção, ou seja, da produção para o mercado, da competição econômica e do trabalho assalariado nas cidades, não podia pôr fim à brutalidade. Ao contrário, tendia a torná-la mais aguda. A vida cotidiana era dominada pela brutalidade da acumulação primitiva.
A expansão da manufatura, por exemplo, ao mesmo tempo que valorizou o trabalho especializado do artesão, exigiu o uso do trabalho não-especializado, que não necessitava de um longo período de treino. Era preciso aumentar a produção e atender as novas necessidades do mercado. A inovação passou a ter um papel muito importante na produção, e isso entrava em contradição com o trabalho do artesão tradicional, que aprendia lentamente uma técnica antiga.
O nascimento da moda era um sinal dos tempos e obrigava a produção a se adequar a ela.
Outro fator de brutalidade era a instabilidade política, principalmente em várias cidades italianas, onde grupos e famílias, muitas de origens plebeia e obscura, conquistavam ou perdiam o poder sucessivamente. O assassinato, a traição, o envenenamento, o golpe de audácia eram comuns na luta pelo poder.
Essa realidade política brutal, por outro lado, evidenciava as potencialidades individuais, a capacidade de o indivíduo construir o seu próprio destino por meio das oportunidades aproveitadas ou perdidas, dos cálculos bem feitos ou malfeitos.
Por outro lado, a democracia relativa de muitas cidades italianas criou, pelo menos por um curto período, um otimismo em relação à possibilidade de realização dos ideais renascentistas. O sucesso individual e o reconhecimento público eram procurados com afinco. A inveja e a competição eram consideradas normais.
O sucesso individual significava dinheiro e fama. Aos homens que viveram em Florença, por exemplo, no auge do Renascimento, esse sucesso parecia depender exclusivamente da capacidade individual. Esse sentimento era justificado pela realidade. O êxito era uma confirmação da humanidade do indivíduo, do valor do seu trabalho.
No auge do Renascimento, os artistas já tinham prestígio social, seu trabalho era valorizado, embora menos do que o dos literatos.
A sociedade, os poderes estabelecidos e o público não eram obstáculos para a realização pessoal. O Renascimento, no seu apogeu, não produziu gênios incompreendidos. Por isso ninguém tinha medo de ser ele mesmo, de parecer diferente, de seguir o seu rumo na vida e de fazer o que achasse melhor.
A extroversão foi, portanto, uma característica do homem renascentista. Por isso não devemos confundir o individualismo renascentista com o atual. O homem renascentista não era egocêntrico, mas voltado para o exterior. Os cidadãos das cidades italianas procuraram servi-las conscientemente. Eles desejavam servir por meio do conteúdo humano das suas obras e das suas ações, isto é, da sua individualidade.
Tudo isso não significa que a sociedade e os poderes estabelecidos tendiam a aceitar os novos valores e a nova convicção de homem? Parece que sim!
Mas esse momento de aceitação foi relativamente breve. À medida que as normas e a ética do mundo iam mostrando a incapacidade de realização dos ideais do Renascimento, estes passaram para a intimidade. A brutalidade da vida cotidiana, no aspecto político ou econômico, não foi resolvida pela eliminação das contradições de interesses entre grupos e classes. O Estado unificado absoluto se firmou exatamente estabelecendo uma ordem social mais estável. Com isso tirou do indivíduo a possibilidade de ele construir o seu destino. O prêmio e o castigo passaram a depender do Estado.
A Igreja Católica e as novas igrejas cristãs surgidas com a Reforma também colocaram freios à liberdade individual. A extroversão e a sinceridade se tornaram não só perigosas, mas anti-cristãs.
Isso desenvolveu a hipocrisia como atitude social necessária. Alcançar um lugar no mundo contra os outros exige disfarces.
PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 139-141.
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