O restaurador, William Hemsley
Qual o sentido de um arquétipo plastificado
em pin-up loura, fria como as neves do norte europeu, num país de mestiços,
afogados em suor? Nada além de sublinhar o modelo da juventude americana numa
sociedade que já engole lixo cultural suficiente, vindo dos Estados Unidos. Para
começar, trata-se de impor um estilo de vida “cor-de-rosa” a toda uma geração
de meninas, na sua maioria, pobres: roupas, jóias, maquiagem,
tudo de mais supérfluo e descartável. A boneca traduz a ideia de que a mulher
deve ser tão improdutiva quanto dispendiosa. Seus saltos altos parecem martelar
impiedosamente a necessidade de opulência, de despesas desnecessárias,
sugerindo ao mesmo tempo a exclusão feminina do trabalho produtivo e, por
conseguinte, a dependência financeira do homem. Nossas filhas são precocemente
empurradas para o mundo da riqueza. Barbie
ensina-lhes a serem consumidoras e consumíveis pelos homens. Na interação da
boneca com a criança, a atenção dada ao aspecto exterior reforça a ideia de que
a beleza física é a chave da popularidade e, consequentemente, da felicidade:
pernas longas, cintura de pilão, traços delicados, cabelos sempre lisos e
louros, seios fálicos como foguetes. Preciso lembrar quantas meninas ficam
absolutamente frustradas por não serem assim?
O universo de Barbie, sua casa, seu guarda-roupa, seu
carro etc. remete à imagem de uma sociedade que é microcosmo de competição e
comparação. Seu mundo é feito de valores materiais, do culto ao dinheiro, das
compras sem fim. A caricatura étnica da boneca “morena” só faz acentuar o ideal
normativo, em que os traços raciais e outros atributos são apagados. Christie, a amiga negra, não representa
a diferença, mas alguém que, diante da loura, está fora da norma. Norma que só
satisfaz, sublinhe-se, no narcisismo, no cuidado com a aparência, numa
feminilidade sem falhas. Pior: Barbie
faz pensar numa geração de mulheres clonadas, perfeitas, incompatíveis com a
realidade social, o que, do ponto de vista da ilusão, deve confortar muita mãe inconseqüente.
Falo mal da Barbie para lembrar a mães, educadoras, psicólogas e professoras
que somos responsáveis pela construção da subjetividade de nossas meninas. Mas
a futilidade de Barbie não exclui a
sua utilidade de lembrar-nos que temos de lutar por valores melhores do que o
dinheiro ou de desejarmos para nossas filhas outra coisa que tornar-se simples
mulheres-objeto.
DEL PRIORE, Mary. Histórias do
Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 46-7.
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