Códice asteca
O primeiro traço fundamental da visão asteca da Conquista é o que se poderia descrever como o quadro mágico na qual esta deveria de desenvolver-se. Os astecas afirmam que, alguns anos antes da chegada dos homens de Castela, houve uma série de prodígios e presságios anunciando o que haveria de acontecer. No pensamento do senhor Motecuhzoma, a espiga de fogo que apareceu ao céu, o templo que se incendiou por si mesmo, a água que ferveu no meio do lago, a voz de uma mulher que gritava noite adentro, as visões de homens que vinham atropelando montados numa espécie de veados, tudo isso parecia avisar que era chegado o momento, anunciado nos códices, do regresso de Quetzalcóatl e dos deuses.
Mas, quando chegaram as primeiras notícias procedentes das margens do Golfo sobre a presença de seres estranhos, chegados em barcas grandes como montanhas, que montavam uma espécie de veados enormes, tinham cães grandes e ferozes e possuíam instrumentos lançadores de fogo, Motecuhzoma e seus conselheiros ficaram em dúvida. De um lado, talvez Quetzalcóatl houvesse regressado. Mas, de outro, não tinham certeza disso. No coração de Motecuhzoma nasceu, então, a angústia. Enviou, por isso, mensageiros que suplicaram aos forasteiros para que regressassem ao seu lugar de origem.
A dúvida a respeito da identidade dos homens de Castela subsistiu até o momento em que, já hóspedes dos astecas em Tenochtitlán, perpetraram a matança do templo maior. O povo em geral acreditava que os estrangeiros eram deuses. Mas quando viram seu modo de comportar-se, sua cobiça e sua fúria, forçados por esta realidade mudaram sua maneira de pensar: os estrangeiros não eram deuses, mas popolacas, ou bárbaros, que tinham vindo destruir sua cidade e seu antigo modo de vida.
As lutas posteriores da Conquista, registradas pelos historiadores indígenas, testemunham o heroísmo da defesa. Mas a derrota final, ao ser narrada nos textos astecas, já é tema de um trauma profundo. A visão final é dramática e trágica. Pode-se ver isto claramente no seguinte "canto triste" ou icnocuícatl:
"Nos caminhos jazem dardos quebrados;
os cabelos estão espalhados.
Destelhadas estão as casas,
incandescentes estão seus muros.
Vermes abundam por ruas e praças,
e as paredes estão manchadas de miolos arrebentados.
Vermelhas estão as águas, como se alguém as tivesse tingido,
e se as bebíamos, eram águas de salitre.
Golpeávamos os muros de adobe em nossa ansiedade
e nos restava por herança uma rede de buracos.
Nos escudos esteve nosso resguardo,
mas os escudos não detêm a desolação..."
(Manuscrito anônimo de Tlatelolco, 1528)
As palavras anteriores encontram novo eco na resposta dos sábios aos doze franciscanos chegados em 1524:
"Deixem-nos, pois, morrer,
deixem-nos perecer,
pois nossos deuses já estão mortos!"
(Libro de los coloquios de los doce, Frei Bernardino de Sahagún)
Muitas outras citações poderiam acumular-se para mostrar o que foi o trauma da Conquista para a alma indígena. [...] a experiência do povo que, após resistir com armas desiguais, viu-se a si mesmo vencido. Não se deve esquecer que os astecas eram seguidores do deus da guerra, Huitzilopochtli; que se consideravam escolhidos do sol e que, até então, sempre creram ter uma missão cósmica e divina de submeter a todos os povos dos quatro cantos do universo. Quem se considerava invencível, o povo do sol, o mais poderoso da Mesoamérica, teve de aceitar sua derrota. Mortos os deuses, perdidos o governo e o mando, a fama e a glória, a experiência da Conquista significou algo mais que tragédia: ficou cravada na alma e sua recordação passou a ser um trauma.
LEÓN-PORTILLA, Miguel. A Conquista da América Latina vista pelos índios. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 16-18.
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