"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Mitologia dos povos pré-colombianos

Xolotl, deus da mitologia asteca

sol 
e a lua
(mito asteca)
O primeiro sol, o sol de água, a inundação levou. Todos os que moravam no mundo se converteram em peixes.

O segundo sol, os tigres devoraram.

O terceiro, uma chuva de fogo, que incendiou as gentes, arrasou.

O quarto, o sol de vento, a tempestade apagou. As pessoas se transformaram em macacos e se espalharam pelos montes.

Pensativos, os deuses se reuniram em Teotihuacán.

- Quem se ocupará de trazer o amanhecer?

O Senhor dos Caracóis, famoso por sua força e por sua formosura, deu um passo adiante;

- Eu serei o sol - disse.

- Quem mais?

Silêncio.

Todos olhavam para o Pequeno Deus Sifilítico, o mais feio e desgraçado dos deuses, e disseram:

- Tu.

O Senhor dos Caracóis e o Pequeno Deus Sifilítico se retiraram para os montes que agora são as pirâmides do sol e da lua.

Depois os deuses juntaram lenha, armaram uma fogueira enorme e os chamaram.

O Pequeno Deus Sifilítico tomou impulso e se atirou nas chamas. Em seguida emergiu, incandescente, no céu.

O Senhor dos Caracóis olhou a fogueira com o cenho franzido. Avançou, retrocedeu, parou. Deu um par de voltas. Como não se decidia, tiveram de empurrá-lo. Com muita demora subiu ao céu. Os deuses, furiosos, o esmurraram. Bateram em sua cara com um coelho, uma e outra vez, até que mataram seu brilho. Assim, o arrogante Senhor dos Caracóis se transformou em lua. As manchas da lua são as cicatrizes daquele castigo.

Mas o sol resplandecente não se movia. O gavião de pedra voou até o Pequeno Deus Sifilítico:

- Por que não andas?

E respondeu o desprezado, o purulento, o corcunda, o manco:

- Porque quero o sangue e o reino.

Este quinto sol, o sol do movimento, iluminou os toltecas e ilumina os astecas. Tem garras e se alimenta de corações humanos.

O milho
(mito maia)
Os deuses fizeram de barro os primeiros maias-quichés. Duraram pouco. Eram moles, sem força; desmoronaram antes de caminhar.

Depois, tentaram com madeira. Os bonecos de pau falaram e andaram, mas eram secos; não tinham sangue nem substância, memória ou rumo. Não sabiam falar com os deuses, ou não encontravam nada para dizer a eles.

Então os deuses fizeram de milho as mães e os pais. Com milho amarelo e milho branco amassaram sua carne.

As mulheres e os homens de milho viam tanto como os deuses. Seu olhar se estendia sobre o mundo inteiro.

Os deuses jorraram um hálito e os deixaram com os olhos nublados para sempre, porque não queriam que as pessoas vissem além do horizonte.

A cidade sagrada
(mito inca)
Wiracocha, que tinha afugentado as sombras, ordenou ao sol que enviasse uma filha e um filho à terra, para iluminar o caminho aos cegos.

Os filhos do sol chegaram às margens do lago Titicaca e começaram a viagem pelas quebradas da cordilheira. Traziam um cajado. No lugar onde afundasse o primeiro golpe do cajado, fundariam um novo reino. Do tronco, atuariam como seu pai, que dá a luz, a claridade e o calor, derrama a chuva e o orvalho, empurra as colheitas, multiplica as manadas e não deixa passar nenhum dia sem visitar o mundo.

Por todas as partes tentaram enterrar o cajado de ouro. A terra recusava, e eles continuavam buscando.

Escalaram picos e atravessaram correntezas e planaltos. Tudo que seus pés tocavam ia se transformando: faziam fecundas as terras áridas, secavam os pântanos e devolviam os rios a seus leitos. Na alvorada, eram escoltados pelos gansos, e pelos condores ao entardecer.

Por fim, junto ao monte Wanakauri, os filhos do sol enterraram o cajado. Quando a terra o tragou, um arco-íris ergueu-se no céu.

Então o primeiro dos incas disse à sua irmã e mulher:

- Convoquemos as pessoas.

Entre a cordilheira e o altiplano o vale coberto de arbustos. Ninguém tinha casa. As pessoas viviam em buracos e ao abrigo de rochedos, comendo raízes, e não sabiam tecer o algodão nem a lã para defender-se do frio.

Todos o seguiram. Todos acreditaram neles. Pelos fulgores das palavras e dos olhos, todos souberam que os filhos do sol não estavam mentindo, e os acompanharam até o lugar onde os esperava, sem ter ainda nascido, a grande cidade de Cuzco.


GALEANO, Eduardo. Nascimentos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

Nenhum comentário:

Postar um comentário