"Um dia a vida surgiu na terra. A terra tinha com a vida um cordão umbilical. A vida e a terra. A terra, era grande e a vida pequena, inicial. A vida foi crescendo e a terra ficando menor, mas não pequena. A vida humana surgiu. E com ela, entre alguns (não todos), a vontade do mando. Cercada, a terra virou coisa de alguém, não de todos, não comuns. Virou a sorte de alguns e a desgraça de tantos. Na história humana, foi tema de revoltas e revoluções. A terra e a cerca. A cerca e a morte. Mas a terra é nossa mãe! Repartida, é a vida." (Herbert de Souza, Betinho, 1935-1987).
Kuarup: ritual no Xingu
Brasil, nem era Brasil. Era aqui. E a vida humana, afinal, surgiu nesse espaço. Os descobridores desta nossa terra, seus habitantes originais, foram os
Nativos ou
Aborígenes ou
Silvícolas ou
Autóctones ou
Índios, por fim.
Denominações dadas pelos que vieram depois, e que definiam aqueles povos por oposição a eles, recém-chegados. Desconsiderando a pluralidade entre os da terra, esquecendo que os nativos são muito diferentes entre si e jamais constituíram um todo homogêneo. Os europeus - que são portugueses, espanhóis, franceses, holandeses - generalizaram: na terra nova (nova para eles) todos são índios. Como se os xavante fossem iguais aos kaiapó, como se os guaranis tivessem um modo de viver igual ao dos yanomami! Errando até no termo: índio é o habitante das Índias.
Menina da etnia Terena
Os brancos conquistadores dominaram também dando nomes, com sua língua portuguesa. Que virou nossa [...]. Falamos português porque quem chegou depois também impôs, por conquista, influência e decreto, a sua língua como única. Inclusive desvalorizando a dos tupinambás. Em 1570, quando os colonos e a Coroa portuguesa estavam empenhados em ocupar o Brasil para não perdê-lo para a Espanha, a França ou a Holanda, Pero Magalhães Gândavo chegou a dizer que, na língua tupi, "não se acha F, nem L, nem R, pois não têm Fé, nem Lei, nem Rei".
[...]
Brasil nem era Brasil. Mas a vida humana já se afirmava aqui, em meio às dificuldades da sobrevivência no ambiente hostil ao pequenino e esperto ser. Há arqueólogos que suspeitam que há 50.000 anos já existiam grupos humanos no nosso território - 410 vestígios de fogueiras e pinturas de diversas épocas foram encontrados na Serra da Capivara, no Piauí. Ali está a maior concentração de sítios arqueológicos das Américas e por isso a região foi considerada pela UNESCO, em 1991, patrimônio cultural da humanidade.
Inscrição rupestre no Costão do Santinho (Florianópolis).
O historiador e roteirista Fernando Navarro, em artigo publicado em O ESTADO DE SÃO PAULO, em 25/7/1999, afirma que "cada vez que se encontra um caco de osso, de cerâmica ou de qualquer outro objeto, isso pode alterar tudo o que se acreditava até então. De acordo com as teorias mais correntes, o povoamento do continente americano teria começado pelo Norte, vindo da Ásia pelo Estreito de Bering, há cerca de 30 mil anos. Mas isso vem sendo contestado pelas pesquisas no Piauí. As descobertas reforçam a hipótese de que o homem chegou ao sul do continente bem antes das migrações pelo norte".
Pintura rupestre na Serra da Capivara (Piauí).
O sul de Minas Gerais de hoje já teria gente há 30 mil anos e a nossa Região Sul estaria povoada por grupos humanos há pelo menos 15 mil anos. Como os nossos antepassados chegaram até aqui? Os estudos continuam buscando a "aurora do homem brasileiro". Uma incrível e fascinante viagem ao passado!
A teoria mais aceita é aquela que fala de migrações sucessivas, com pequenos grupos humanos vindos lá da Ásia [...]. Saídos da Mongólia e da Sibéria, através da faixa de terra que hoje conhecemos como Estreito de Bering, os bandos, caçando bisões, chegaram ao Alasca, ao Canadá. Longa, heróica e extenuante travessia em busca de bom clima, de alimentos, de vida melhor. Outros grupos podem ter chegado por via marítima, através do Oceano Pacífico. E há mesmo quem afirme que, nessas migrações sucessivas, além dos mongolóides, melanésios e polinésios, vieram também australóides, através da Antártida. O brasileiro seria múltiplo até nas origens.
Índio Pataxó
Brasil não era Brasil. América não era América. Mas, há pelo menos 12 mil anos atrás, seguramente, aqui existiam povos e culturas. Vida humana! Olhando o mundo a partir do próprio umbigo, dizemos que são sociedades primitivas, pré-colombianas, pré-cabralinas. [...]
A América não era América mas a história humana já se desenrolava, há muito, entre os incas, aztecas, maias, iroqueses, algonquinos, araucanos, patagões, esquimós, marajoaras, caraíbas, sambaquieiros, aruaques, jês, tupis e tantos outros.
[...]
Povos daqui. No interior, no litoral. Povos dos sambaquis, pescadores, que juntavam milhões de conchas e formavam elevados onde iam morar. [...] Os sambaquis brasileiros só passaram a ter seu valor arqueológico reconhecidos [...] em 1961. Muitos foram cortados por estradas, outros escavados para recolhimento de calcário, matéria-prima na produção de cal. Mesmo assim ainda são quase mil! A maioria deles construída entre o Sul da Bahia e o Rio Grande do Sul. Esses povos do nosso litoral - precursores dos jangadeiros - que não praticavam a agricultura mas eram hábeis escultores de pedra, começaram a desaparecer quinhentos anos antes da chegada dos portugueses aqui. É provável que tenham se miscigenado com os tupis e caminhado para terras mais firmes. E o Brasil nem era Brasil...
Povos daqui, na gigantesca Amazônia. Onde supõe-se habitarem cerca de cinco milhões de pessoas, quando os portugueses por lá chegaram na primeira metade do século XVI. Para muitos arqueólogos que examinaram as maravilhosas peças de cerâmica marajoara e tapajônica, na Amazônia floresceram as culturas mais desenvolvidas da América do Sul, que espalharam sua influência pela região andina. Esses povos da floresta (alguns, como os marajoaras, desaparecidos antes da conquista europeia) construíram aldeias enormes e tinham uma relação mística, muito bonita, com o ambiente onde viviam e com os seus mortos. Dizimados, seus vestígios são as cerâmicas desenhadas e as pedras esculpidas - como o muiraquitã, amuleto em pedra verde, garantidor de saúde e fertilidade.
Quando os portugueses bateram à nossa porta, bem que podiam ter respondido: - TEM GENTE! E como tinha: gente em toda parte, povos de toda espécie, culturas as mais variadas, línguas as mais diversas. Mas os europeus, que se julgavam donos do mundo e pais da inteligência, logo enfiaram toda aquela gente "de tamanha barbaria" numa categoria só: índios. E nem nas Índias estavam.
Espanhóis e portugueses, em 1492 e em 1500, capitaneados por Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral, não chegaram às Índias, como o primeiro supôs até morrer [...] nem se depararam com um povo só, igual.
Em 1500, que não é data do descobrimento do Brasil mas sim marco de uma nova etapa na nossa História, os povos nativos eram inúmeros, espalhados pelo imenso território que depois foi denominado Brasil e delimitado pelo poder dos brancos. A nação de um nativo é a sua terra e os conflitos entre os povos eram muitos. [...]
O Brasil não foi "descoberto" em 1500: foi invadido. É quase certo que Portugal tinha população bem menor que a daqui, assim como a Europa, em geral, tinha menos gente que as Américas: mesmo assim os conquistadores conseguiram, em dois séculos, despovoar o que, para eles, era o "novo mundo"! A ferro, doenças e fogo!
Em 1500, os "descobridores" nem desconfiavam que, além dos Pataxós-Tupinambás que eles encontraram no litoral sul da Bahia, faziam do futuro Brasil seu chão e vida os Carijós e Charruas, no sul; os Bororos, Caiapós, Xavantes e Góias, no centro-oeste; os Tupiniquins e Guaianás, no sudeste; os Caetés, Botocudos e Aimorés, no nordeste; os Timbiras, Mundurucus e Manaus, no norte; os Guanás e Guaicurus, no pantanal - E CENTENAS DE OUTROS POVOS, incontáveis, coletores, caçadores, pescadores, agricultores, artesãos. Do tronco linguístico tupi, macro-jê, aruaque e caribe.
Chamá-los genericamente de "índios", sem destacar sua diversidade, é como dizer que o português é um "branco" ou "europeu" e os povos trazidos como escravos para cá, a partir do século XVI, são apenas "africanos" ou "negros". O termo índio está consagrado, e mesmo os antropólogos o utilizam em seus estudos científicos. Mas cabe sempre procurar definir melhor: índio de qual povo, de que nação, de qual região?
[...]
Em sua variedade, os povos originários do futuro Brasil diferiam entre si: caçavam uns, outros também dominavam a agricultura. Alguns eram mais sedentários, fixos na terra, enquanto outros viviam, caminhantes, no monadismo. Havia os que praticavam a antropofagia ritual [...]. Outros eram vegetarianos [...]. Uns moravam em enormes malocas comunitárias, outros tinham aldeias com várias casas, e ainda outros, andarilhos, faziam abrigos para manter o fogo aceso ou se proteger nas noites de chuva.
Os "índios do Brasil só se assemelhavam mesmo na habilidade para sobreviver, no respeito à natureza, da qual se sentiam parte, na vontade de festejar a vida, inclusive com beberagens estimulantes. [...]
Constituir-se como ser humano que pensa grande e enxerga longe é reconhecer a diferença, a diversidade. O direito à alteridade. [...]
ALENCAR, Chico. BR-500: um guia para a redescoberta do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 47-48, 50-59.
[...]
Povos daqui. No interior, no litoral. Povos dos sambaquis, pescadores, que juntavam milhões de conchas e formavam elevados onde iam morar. [...] Os sambaquis brasileiros só passaram a ter seu valor arqueológico reconhecidos [...] em 1961. Muitos foram cortados por estradas, outros escavados para recolhimento de calcário, matéria-prima na produção de cal. Mesmo assim ainda são quase mil! A maioria deles construída entre o Sul da Bahia e o Rio Grande do Sul. Esses povos do nosso litoral - precursores dos jangadeiros - que não praticavam a agricultura mas eram hábeis escultores de pedra, começaram a desaparecer quinhentos anos antes da chegada dos portugueses aqui. É provável que tenham se miscigenado com os tupis e caminhado para terras mais firmes. E o Brasil nem era Brasil...
Menino Caete
Povos daqui, na gigantesca Amazônia. Onde supõe-se habitarem cerca de cinco milhões de pessoas, quando os portugueses por lá chegaram na primeira metade do século XVI. Para muitos arqueólogos que examinaram as maravilhosas peças de cerâmica marajoara e tapajônica, na Amazônia floresceram as culturas mais desenvolvidas da América do Sul, que espalharam sua influência pela região andina. Esses povos da floresta (alguns, como os marajoaras, desaparecidos antes da conquista europeia) construíram aldeias enormes e tinham uma relação mística, muito bonita, com o ambiente onde viviam e com os seus mortos. Dizimados, seus vestígios são as cerâmicas desenhadas e as pedras esculpidas - como o muiraquitã, amuleto em pedra verde, garantidor de saúde e fertilidade.
Kuarup: ritual no Xingu
Quando os portugueses bateram à nossa porta, bem que podiam ter respondido: - TEM GENTE! E como tinha: gente em toda parte, povos de toda espécie, culturas as mais variadas, línguas as mais diversas. Mas os europeus, que se julgavam donos do mundo e pais da inteligência, logo enfiaram toda aquela gente "de tamanha barbaria" numa categoria só: índios. E nem nas Índias estavam.
Jovem índia Xerente
Espanhóis e portugueses, em 1492 e em 1500, capitaneados por Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral, não chegaram às Índias, como o primeiro supôs até morrer [...] nem se depararam com um povo só, igual.
Em 1500, que não é data do descobrimento do Brasil mas sim marco de uma nova etapa na nossa História, os povos nativos eram inúmeros, espalhados pelo imenso território que depois foi denominado Brasil e delimitado pelo poder dos brancos. A nação de um nativo é a sua terra e os conflitos entre os povos eram muitos. [...]
O Brasil não foi "descoberto" em 1500: foi invadido. É quase certo que Portugal tinha população bem menor que a daqui, assim como a Europa, em geral, tinha menos gente que as Américas: mesmo assim os conquistadores conseguiram, em dois séculos, despovoar o que, para eles, era o "novo mundo"! A ferro, doenças e fogo!
Índios Kuikuro
Em 1500, os "descobridores" nem desconfiavam que, além dos Pataxós-Tupinambás que eles encontraram no litoral sul da Bahia, faziam do futuro Brasil seu chão e vida os Carijós e Charruas, no sul; os Bororos, Caiapós, Xavantes e Góias, no centro-oeste; os Tupiniquins e Guaianás, no sudeste; os Caetés, Botocudos e Aimorés, no nordeste; os Timbiras, Mundurucus e Manaus, no norte; os Guanás e Guaicurus, no pantanal - E CENTENAS DE OUTROS POVOS, incontáveis, coletores, caçadores, pescadores, agricultores, artesãos. Do tronco linguístico tupi, macro-jê, aruaque e caribe.
Primevos, Antonio Parreiras
Chamá-los genericamente de "índios", sem destacar sua diversidade, é como dizer que o português é um "branco" ou "europeu" e os povos trazidos como escravos para cá, a partir do século XVI, são apenas "africanos" ou "negros". O termo índio está consagrado, e mesmo os antropólogos o utilizam em seus estudos científicos. Mas cabe sempre procurar definir melhor: índio de qual povo, de que nação, de qual região?
[...]
Em sua variedade, os povos originários do futuro Brasil diferiam entre si: caçavam uns, outros também dominavam a agricultura. Alguns eram mais sedentários, fixos na terra, enquanto outros viviam, caminhantes, no monadismo. Havia os que praticavam a antropofagia ritual [...]. Outros eram vegetarianos [...]. Uns moravam em enormes malocas comunitárias, outros tinham aldeias com várias casas, e ainda outros, andarilhos, faziam abrigos para manter o fogo aceso ou se proteger nas noites de chuva.
Povo Baré
Os "índios do Brasil só se assemelhavam mesmo na habilidade para sobreviver, no respeito à natureza, da qual se sentiam parte, na vontade de festejar a vida, inclusive com beberagens estimulantes. [...]
Constituir-se como ser humano que pensa grande e enxerga longe é reconhecer a diferença, a diversidade. O direito à alteridade. [...]
ALENCAR, Chico. BR-500: um guia para a redescoberta do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 47-48, 50-59.
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