"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Religião, sexo e família

Coleta de esmolas para a Igreja do Rosário, Debret

[...] a religião funcionava, como justificativa última da escravidão, na medida em que tudo o que acontecia com o escravo seria para o seu bem, para a salvação de sua alma. Mas era importante que também o escravo fosse cristão: abandonando sua religião de origem ele perderia um importante referencial de sua vida como homem livre e adotando o catolicismo teria como se conformar com sua condição. Assim, o escravo não apenas podia ser católico, ele tinha que sê-lo.

[...] A religião, no período da escravatura, deveria ser um freio para os revoltados, um consolo para os desanimados, uma esperança para os desgraçados, um alento para os fracos, como se dizia na época.

O senhor deveria ser entendido como um pai, severo e duro, temido e respeitado, que tudo fazia para o bem dos seus filhos. [...] a par da exploração material, acenava-se com a igualdade espiritual; conviviam o fato da miséria terrena e o ideal do paraíso celeste; argumentava-se com o infinito àqueles que só enxergavam suas cadeias; acenava-se com um assento à mesa de Deus aos miseráveis que engoliam sua comida nojenta de cócoras; falava-se de plenitude aos carentes, de calor aos que tinham frio, de alegria aos tristes, de alívio aos sofridos.

Tudo isso, porém, só poderiam obter se cumprissem o seu dever. Porque a virtude do homem - dizia a religião para o escravo - estava em trabalhar duro para o seu sustento; em conformar-se e se manter manso [...]; em submeter-se à ordem vigente, em respeitar o senhor e em arrepender-se das faltas [...].

O escravo era batizado logo que chegava ao seu local de trabalho - fazenda ou cidade - recebendo um nome "cristão". Devia esquecer a forma pela qual era chamado no seu lugar de origem. A atribuição de um novo nome e o batismo representavam a transformação do cativo em escravo, isto é, o início do trabalho compulsório. Assim, era de se esperar uma identificação feita pelo escravo, entre o poder e a religião. [...]

A religião, ensinando a mansidão e o conformismo, não se afinava com os movimentos de revolta em qualquer nível, ativos e passivos.

Por outro lado, não se pode negar que a grande massa de escravos ia se adaptando, tanto à sua condição quanto à religião. As formas de repressão desenvolvidas pelos senhores tinham por objetivo exatamente desestimular qualquer tipo de revolta ou reação contra si. [...] (Há exceções notáveis aqui, entre as quais a importante revolta dos malês, ocorrida na Bahia, assim como o candomblé e a capoeira como formas de resistência.)

Jogo de capoeira, Rugendas

No decorrer dos anos, o catolicismo imposto aos escravos vai sofrer alterações significativas, digerido tanto pela cultura trazida por eles da África, quanto pela prática social no Brasil. O chamado sincretismo religioso é uma das formas que distinguem a religião dos escravos daquela dos senhores. [...]

Por outro lado, valores morais apregoados pela religião eram sabidamente desobedecidos pelos senhores. Com toda a propalada preocupação em manter unida a família, o escravismo foi um elemento profundamente desagregador de uniões permanentes. Primeiramente porque separava, sem a menor cerimônia, casais que porventura viessem unidos da África. Depois, porque a desproporção entre homens e mulheres trazidos não era de molde a propiciar ligações permanentes. Na verdade, as condições de vida nas senzalas e a existência de uma mulher para quatro ou cinco homens estimulava o caráter transitório das ligações.

[...]

Conscientes do problema que representava a presença de muitos homens sem mulher, os senhores, na prática, estimulavam uniões transitórias, realizadas, frequentemente, apenas com o seu beneplácito, sem as bênçãos da religião - que, aliás, fechava os olhos para o fato. Mais comum ainda era a escrava ter filhos de vários homens, sem mesmo se envolver em ligações transitórias oficializadas pelo senhor.

Quando, excepcionalmente, a cerimônia religiosa ocorria, os sacramentos eram cumpridos pelo padre como formalidade desagradável e não como ato de fé. Considerava-se o ato como um luxo e não como decorrência da formação religiosa ministrada aos negros desde a infância.

Não se levam em consideração esses elementos quando, com enorme carga de preconceito, pretende-se atribuir aos negros características como leviandade nas relações pessoais e promiscuidade sexual. Na verdade, isso não tem, evidentemente, nenhum fundamento biológico, ou mesmo social: era fruto de constrangimento a que eram submetidos, à sua condição.

Interior de uma casa do baixo povo, Guillobel

Mesmo porque os senhores se utilizavam da situação para dar vazão à sua atividade sexual geralmente bastante reprimida em casa. Com efeito, o papel da esposa branca e legítima era apenas o de dar filhos ao seu marido [...]. Limitada em seus movimentos às fronteiras da residência do casal, pouco fazia. Desde menina tinha um bando de negrinhas a segui-la, atentas às suas ordens. Não se abaixava para levantar um lenço do chão, crescia balofa e vadia. Casava-se cedo, cedo começava a procriar. Evitava o "terrível" pecado original do prazer nas relações sexuais: na verdade, isso lhe era implicitamente vedado. Tinha como modelo a própria mãe de Deus, Maria, e supunha-se que deveria chegar perto de Maria como mulher virtuosa. Engordava após o parto e dificilmente voltava às curvas originais - com vinte anos já era uma matrona.

Não é difícil agora, numa época de menor repressão sexual imaginar a frustração dessas verdadeiras matrizes, utilizadas para procriar sem prazer. [...]

Quanto ao senhor, contudo, não há dúvidas. Cumpria com sua mulher branca as obrigações de reprodutor e marido, mas voltava-se às escravas para o prazer sexual. Entregava-se às negras e mulatas com todo o empenho, buscando usufruir delas a satisfação que não encontrava em sua formal cama de casado. O mito das mulheres quentes, atribuído, até hoje, às negras e mulatas pela tradição oral, decorre do papel que lhes era designado pela sociedade escravista. O historiador José Alípio Goulart recolheu [...] duas quadrinhas populares que consagram o caráter de objeto sexual dado às escravas bonitas:

Preta bonita é veneno
Mata tudo que é vivente;
Embriaga a criatura,
Tira a vergonha da gente.

Mulata é doce de coco,
Não se come sem canela.
Camarada de bom gosto,
Não pode passar sem ela.

Por seu turno, para as escravas, uma relação com o patrão poderia reverter em vantagens dentro da sua condição. Sabe-se de violências sexuais atrozes praticadas por senhores e feitores contra as negras escravas. [...] Mas não se pode negar que, diante da possibilidade de melhorar de condição [...] e vislumbrando também a possibilidade de ter um filho livre, a escrava acabasse cedendo ou, até mesmo, seduzindo o seu senhor. Ela sabia que quanto melhor fosse o seu desempenho sexual, mais oportunidades ela teria de prender o senhor, de reverter e até inverter a relação de poder, num ato que era também uma forma de vingança contra a sinhá e expectativa de tratamento privilegiado. Se conseguisse engravidar, via perspectivas de seu filho vir a ser libertado e incluído como agregado à grande família do senhor.

[...]

Às vezes - e muitas - a vingança saía pela culatra. Ofendida em seu amor próprio, a senhora utilizava-se de sua posição e torturava cruelmente a escrava, a ladra de seu homem. Assim morreram muitas jovens escravas, algumas das quais nem sequer quiseram dormir com o patrão, mas viram-se constrangidas a concordar com uma relação que, na sua condição de propriedade alheia, dificilmente conseguia evitar.

De qualquer forma, os documentos registram numerosos testemunhos das incursões que os senhores faziam às suas senzalas, com ou sem o consentimento das sinhás, com ou sem a aprovação das escravas: a multidão de mulatos, filhos de negras retintas; o grande número de agregados que aparecem nas famílias, sem papel definido, mas geralmente exercendo funções de confiança do senhor, e às vezes sendo por eles lembrados nos testamentos; e manumissões, de outras formas inexplicáveis, provavelmente fruto de promessas feitas durante o ato do amor com a mãe do libertado.

A partir de meados do século XIX, a propaganda abolicionista iria revelar vários aspectos da promiscuidade sexual, usando-a como argumento contrário à escravidão, acrescentando, já agora com o apoio de certos setores "progressistas" da Igreja, que ela "corrompia a família brasileira". Só então a legislação tratou de evitar a separação entre cônjuges, de estimular a união duradoura, de impedir a venda de filhos menores de 15 anos, entre outras medidas. [...]

[...]

[...] as relações inter-raciais eram muito complexas, não se reduzindo à já caricata presença da matronal mãe preta: produtora de leite sempre à mão e anjo de guarda das traquinagens dos garotos brancos.

Como consequência da relação senhor/escrava, ou por meio de ligações que ocorreram e ainda ocorrem entre negros e brancos livres, a miscigenação racial tem sido muito intensa no Brasil. [...]

PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2019. p. 56, 58, 60, 62, 64-66.

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