"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 29 de maio de 2012

"A Aliança das Civilizações"


As correntes do Bósforo são conhecidas por sua força e por terem o sentido inverso na superfície e na profundidade. No entanto, há séculos o povo turco aprendeu a negociar entre estas correntes, na fronteira entre a Europa e a Ásia e entre o mundo islâmico e o Ocidente, o que contribuiu para a sua prosperidade. O relatório "A Aliança das Civilizações" ressalta justamente que a fusão das diferenças, sejam de opinião, de cultura, de credo ou de modo de vida, foi desde sempre o motor do progresso humano. Na época em que a Europa atravessava a idade das trevas, a Península Ibérica construiu seu progresso sob a interação entre as tradições muçulmanas, cristãs e judaicas. Mais tarde o Império Otomano prosperaria graças, sem dúvida, ao seu exército, mas também porque, neste império de ideias, a arte e as técnicas muçulmanas foram enriquecidas pelas contribuições judaicas e cristãs.

Infelizmente, muitos séculos mais tarde, é o crescimento da intolerância, do extremismo e da violência que marca nossa era de mundialização. Longe de semear a compreensão e a amizade mútuas, o estreitamento das distâncias e a melhora nas comunicações têm frequentemente engendrado tensão e desconfiança. Muitos são os que chegam a temer, especialmente nos países em via de desenvolvimento, a existência da comunidade planetária - sinônimo, a seus olhos, de agressão cultural e de sangria econômica. A globalização ameaça tanto seus valores quanto seu bolso.

Os ataques terroristas do 11 de setembro, a guerra e os conflitos no Oriente Médio, as propostas e os projetos mal-inspirados só servem para reforçar este sentimento e provocar tensão entre os povos e as culturas. As relações entre os fiéis das três grandes religiões monoteístas foram fortemente postas a prova. [...] 

No momento em que as migrações internacionais levam um número sem precedentes de pessoas das mais diversas religiões e culturas a viver lado a lado, os radicalismos e estereótipos que sustentam a ideia de "choque das civilizações" são cada vez mais propagados. Alguns grupos parecem impacientes para fomentar uma nova guerra de religiões, desta vez em escala mundial. E indiferença ou até mesmo desprezo que os outros manifestam em relação a suas crenças ou símbolos apenas lhes facilita a tarefa.

Em suma, a ideia de uma aliança das civilizações não poderia chegar em melhor hora, visto que não vivemos em mundos diferentes, como acontecia com nossos ancestrais. As migrações, a integração e a técnica têm aproximado as diferentes comunidades, culturas e etnias, fazendo cair velhas barreiras e desvendando novas realidades. Nós vivemos como jamais seria possível antigamente, lado a lado, submetidos a várias influências e ideias diferentes.

A demonização do "outro" revelou-se o caminho mais fácil. Neste século 21, continuamos reféns de nossa própria percepção da injustiça e de nossos direitos. Nosso discurso tornou-se a nossa prisão. Para muitas pessoas ao redor do mundo, em particular os muçulmanos, o Ocidente é uma ameaça a suas crenças e valores, interesses econômicos e aspirações políticas. Qualquer prova em contrário está condenada ao desdém e ao descrédito. Do mesmo modo, muitos ocidentais consideram o Islã como uma religião de extremismo e violência, mesmo sabendo que os dois mundos mantêm há muito tempo relações nos quais o comércio, a cooperação e as trocas culturais têm ocupado no mínimo tão importante quanto o dos conflitos. [...]

Inspiremo-nos por uma inscrição que pode ser vista no museu de Arqueologia de Istambul. Ela contém o tratado de paz firmado entre os impérios hitita e egípcio, depois da sangrenta batalha de Kadesh, em 1229 a.C. Tendo colocado um ponto final em décadas de desconfiança e guerra, este acordo marcou uma etapa histórica: os dois campos comprometeram-se a trocar assistência mútua e a cooperar. Esta é, de fato, a representação literal de uma aliança entre duas grandes civilizações. [...]

[Parte do discurso do ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, em Istambul. In: Le Monde Diplomatique: Brasil, São Paulo, fev. 2007.]

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