"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 11 de maio de 2012

O caminho em direção à igualdade

Marcha do Dia da Consciência Negra

"[...] multiplicam-se as denúncias de trabalho escravo no Brasil e os criminosos permanecem impunes. As autoridades limitam-se a libertar os trabalhadores escravos, dentre os quais encontram-se até crianças.

Será que, neste novo milênio, a sociedade brasileira continuará marcada por tantas permanências coloniais?

Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó.
(O mundo é um moinho, samba de Cartola)

Será que o mundo persistirá reduzindo a pó o sonho de liberdade dos negros?” AQUINO, R. S. L. et alli. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2011; p. 49.


[...] Depois do fim da escravidão as elites brasileiras buscaram eliminar nossos laços com as culturas africanas e os sinais da presença dos afrodescendentes entre nós, sonhando com o branqueamento da população. Este seria conseguido com a chegada de grande quantidade de imigrantes europeus, enquanto os negros desapareceriam não só pela miscigenação como pelos altos índices de mortalidade que atingiam as populações mais pobres.

Essa posição brasileira era radicalmente diferente da norte-americana, na qual os preconceitos contra os afrodescendentes resultaram na segregação total entre brancos e negros. A mestiçagem lá era recriminada e o mestiço era considerado negro. Já no Brasil, ele ia ficando cada vez mais branco, o que, pensavam os poderosos, resultaria numa sociedade branca. A força do pensamento dominante fazia com que os afrodescendentes se sentissem inferiorizados devido às suas origens africanas, buscando escondê-las com o abandono de suas tradições (pelo menos entre os mais instruídos) e com a preferência por casamentos inter-raciais que produzissem filhos de pele mais clara, cabelo mais liso, lábios e nariz mais finos. Assim, se aceitávamos e mesmo estimulávamos a mestiçagem, não era por falta de preconceitos, e sim porque queríamos apagar os traços africanos de nossa população. Da mesma forma, buscava-se um distanciamento cada vez maior da África, considerada terra de povos atrasados, incapazes de construir civilizações evoluídas.

O branqueamento, porém, não aconteceu. Como todos sabemos, os brasileiros, mesmo quando são negros ou mestiços, são bastante morenos se tomarmos os europeus e norte-americanos brancos como referência. Apesar da miscigenação que tornou até mesmo a elite mais morena, a maioria dos negros e mestiços foi mantida nos segmentos mais desfavorecidos da população, não só pela precariedade das oportunidades oferecidas para a sua educação e aprimoramento profissional como também pela preferência por pessoas de pele mais clara para ocupar os melhores cargos no mercado de trabalho. [...]

[...] No que diz respeito à África, especificamente, o desenvolvimento dos estudos sobre as suas sociedades, do presente e do passado, mostrou a sua complexidade, no caso dos grandes reinos e impérios, e a sua eficácia, no caso das sociedades descentralizadas, organizadas a partir de aldeias, com formas de estruturação mais comunitárias. [...]

Todas essas mudanças na maneira de ver o mundo, as sociedades e as pessoas, que não eram mais hierarquizadas a partir das suas características biológicas, fortaleceram um movimento de afirmação da negritude e de valorização das coisas africanas, do qual participaram os países que no passado estiveram envolvidos com a escravidão e o tráfico de escravos - razão do transporte de mais de 10 milhões de pessoas da África para as Américas. [...]

Tomando consciência disso, e conhecendo melhor a história e as sociedades africanas, os afrodescendentes passaram, pouco a pouco, a valorizar seus traços distintivos, suas culturas ancestrais, sua contribuição à formação da sociedade brasileira, mudando sua posição de uma vontade de se tornar igual ao branco para uma valorização de suas tradições, estéticas, sensibilidades e aparências. O sentimento de inferioridade criado pela situação anterior deu lugar ao orgulho de ser negro, que será um dos pilares da construção de um novo lugar do afrobrasileiro no conjunto da sociedade.

Isso, porém, não é suficiente. Relações sociais construídas ao longo de mais de trezentos anos não são alteradas de uma hora para outra. Preconceitos profundamente arraigados não são derrubados só com doses de boa vontade. A elite branca não abrirá mão de sua posição privilegiada por livre e espontânea vontade. Para ajudar as transformações, além das mudanças de comportamento e sensibilidade, são fundamentais as alterações na legislação que ordena a sociedade e as relações entre os homens. E isso também vem acontecendo, principalmente a partir dos anos 1990, quando as discussões relativas à reserva de vagas nas empresas e nas universidades para afrodescendentes começaram a virar realidade na forma de leis. Mesmo com sua implantação dificultada por uma série de variáveis e incertezas acerca da pertinência ou não de tais medidas legais, aos poucos as coisas vão mudando, inclusive no plano das sensibilidades.

As ações afirmativas,  como são chamadas essas reservas de vagas em empresas e universidades, certamente têm vários problemas, sendo um dos principais o estabelecimento de critérios de quem estará apto a pleiteá-las numa sociedade mestiça, portanto com os limites entre o branco e o negro extremamente difíceis de serem estabelecidos. Além disso, é evidente que com essa medida não se enfrenta o problema da deficiência da educação fundamental nas escolas públicas, onde estudam as parcelas mais pobres da população, que também são as mais negras e mestiças. Com pior formação escolar, esses estudantes não conseguem competir em pé de igualdade pelas vagas nas universidades públicas com aqueles formados em escolas particulares. Mas, apesar dos problemas, de algum lugar temos de partir, e a garantia de acesso a posições às quais os afrodescendentes estiveram sistematicamente excluídos é uma conquista de condições mais igualitárias para o desenvolvimento de todas as pessoas, independentemente das origens étnicas ou sociais. 

[...]

Ao mudarmos a maneira como nos aproximamos desses temas e percebemos a importância dos africanos e afrodescendentes para a nossa formação, assim como o valor das sociedades africanas, que têm muito a contribuir para a história da humanidade como um todo, estaremos caminhando para o fortalecimento da autoestima de todos os afrobrasileiros e dos brasileiros em geral. Ao superar o sentimento de inferioridade os negros terão mais força para impor o respeito aos seus direitos. Ao percebermos o valor da contribuição africana, teremos mais orgulho do que somos: povo mestiço, no qual a convivência dos diferentes criou a originalidade que nos caracteriza, e que nos faz admirados pelos povos que só agora passam a lutar com a intensificação da mestiçagem. No mundo contemporâneo, cada vez mais mestiço, o Brasil poderá ser um exemplo a ser seguido, dependendo de como lidarmos com a diversidade de nossa população.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2007. p. 140, 142-145.

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