A mitologia colocou em cena esse povo estranho, formado por mulheres-soldados aguerridas, que recusavam a autoridade masculina e encarnavam o avesso do que pregava a sociedade antiga |
por Catherine Salles*
Amazona fugindo. Vaso ático, 510-500 a.C.
As amazonas pertencem ao domínio da transgressão. Essas
guerreiras mitológicas simplesmente desprezavam os valores femininos vigentes
na Antiguidade. Por isso, os gregos as viam como um desafio a qualquer “lei
natural” ou social. Mais ainda, como um mal encarnado e ambíguo, que causava
repulsa e, ao mesmo tempo, seduzia os homens. De fato, elas tinham em si uma
centelha revolucionária, capaz de virar pelo avesso todas as certezas da
sociedade grega.
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Relevo de mármore do século IV a.C. retrata guerreiras atacando um combatente heleno
No mundo real,
a mulher era sempre um ser menor, e sua função essencial era parir os futuros
cidadãos da Grécia. O homem e a mulher eram complementares, mas sua natureza, de
acordo com a vontade dos deuses, era essencialmente diferente, daí serem
considerados unicamente viris o trabalho no campo, a caça, o treino desportivo e
a guerra. Por extensão, as gregas também eram alijadas do poder
político.
As virtudes femininas eram a obediência e o pudor. Um texto de
Aristóteles evoca bem o modo como os gregos justificavam pela ordem natural as
relações entre sexos e define por antítese o que seria impossível para a mulher:
“A natureza criou um sexo forte e um sexo frágil. O primeiro, em razão da sua
virilidade, está mais apto a afastar os adversários, o segundo está mais apto a
realizar-se sob a guarda masculina, devido a uma tendência natural para o medo.
O primeiro traz para o domicílio os bens do exterior, o segundo vela sobre o que
está em casa”.
O texto prossegue da seguinte forma: “Na divisão do
trabalho, o primeiro, menos afeito ao descanso, encontra prazer no movimento. O
segundo está mais apto a levar uma vida sedentária e não tem forças suficientes
para a vida ao ar livre. Enfim, se os dois sexos participam na geração das
crianças, o bem destas últimas irá exigir de cada um dos pais um papel
particular: a mulher terá a função de alimentá-las, o homem, a de
educá-las”.
A amazona é aquela que recusa essa distribuição de
competências, pois pura e simplesmente eliminou os homens de sua estrutura
política e social. Na Ilíada, essas guerreiras são chamadas por Homero de
antianeira (anti-homem). O prefixo grego anti, nesse caso, pode ter o sentido de
“contra” o homem, mas também de “igual” a ele.
Representadas sempre como guerreiras e caçadoras, desde
pequenas montavam cavalos (com as pernas abertas) e aprendiam a manejar o arco,
o dardo, a espada e o machado de combate. Para atirar melhor, elas cauterizavam
(ou cortavam) o seio direito, o que, para Hipócrates, “desloca toda a força e
desenvolvimento para o ombro e braço”.
A deusa Ártemis (Diana para os romanos) era venerada pelas amazonas, pois, como
elas, habitava os espaços selvagens, recusava a sociedade dos homens e se
dedicava à caça
O nome das fabulosas criaturas vem dessa prática:
a-mazos significa “sem seio”. Por alguma razão, porém, a iconografia disponível
costuma mostrá-las com os dois seios intactos. Além do significado prático, a
mutilação do seio tem um aspecto simbólico: elas permaneciam mulheres pelo lado
esquerdo e tornavam-se homens pelo direito.
Amazona ferida, Franz von Stuck
As guerreiras veneravam
Ártemis, que, como elas, habitava os espaços selvagens, recusava a sociedade dos
homens e dedicava seus dias à caça. Os relatos antigos sobre esses lendários
seres informam que sua sociedade era dividida geralmente em duas tribos, cada
qual com sua rainha. Enquanto uma estava ocupada com a guerra, a outra
permanecia sedentária, para proteger seu povo. Sua hipotética “cidade”
chamava-se Themiscrya, situada além do mar Negro, às margens do rio
Termodonte.
As amazonas podiam fazer longínquas incursões. São atribuídas
a elas invasões na Ásia Menor e na Grécia. Em uma delas, Myrina, à frente de 20
mil guerreiras a cavalo e 3 mil a pé, declarou guerra aos habitantes de
Atlântida, tomou conta da cidade, massacrou os homens, prendeu mulheres e
crianças. Elas eram temidas por andarem armadas e em bandos, mas também porque,
não aceitando a presença de homens em seu meio, acasalavam como os animais,
desprezando as regras do casamento entre humanos. Uma vez por ano, se entregavam
aos povos vizinhos e obrigavam os homens a ter relações com elas. Tudo acontecia
aleatoriamente, na escuridão, de modo que não pudessem reconhecer seus
parceiros. Eram elas que violentavam e “usavam” os homens.
Amazonas saem a cavalo, Johann Heinrich Wilhem
Quando nasciam
as crianças, conservavam as meninas e matavam os meninos. Recusavam-se a
amamentar as filhas, com medo de deformar os seios, e criavam-nas com leite de
égua.
Não conheciam a navegação nem a cultura dos cereais – daí vem a
outra etimologia proposta para seu nome, a-maza também quer dizer “sem cevada”.
Alimentavam-se de carne crua.
* Catherine Salles é doutora em letras clássicas. In: Revista História Viva.
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