"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 12 de abril de 2014

Cativos, sim; escravos, não: o trabalho no Egito antigo

Israel no Egito (detalhe), Edward Poynter 

Diante dos grandes monumentos, como as pirâmides, só nos resta imaginar as massas de indivíduos curvados sob fardos muito pesados e sob as ordens de contramestres sádicos. E se trabalhar para o faraó constituísse de fato uma forma de recompensa?

É um dos temas que despertam mais paixão nos egiptólogos, mas também o fundamentalismo – a palavra não é forte demais – tanto daqueles que negam ferozmente o fato quanto daqueles que afirmam o contrário com veemência, como se a vida de uns e de outros dependesse da resposta. Como se também fosse possível resolver de forma simples um problema envolvendo noções tão complexas quanto as que dizem respeito à liberdade humana.

O Egito não conheceu a escravidão no sentido greco-romano, designando um indivíduo privado de sua liberdade, vivendo sob a autoridade absoluta de um mestre, seja devido ao nascimento – sendo ele mesmo filho de escravo –, seja após ter sido capturado (no decorrer de uma guerra), vendido ou condenado. Considerado como um bem material, ele se torna – para sempre – a propriedade explorável e negociável de outra pessoa. Ao longo do Vale do Nilo, essa forma de escravidão não ocorreu antes da época ptolomaica (século IV antes da nossa era), data em que os gregos se tornaram soberanos do país, levando com eles algumas de suas tradições, em particular a escravidão. Na sociedade egípcia, existiam múltiplos níveis de dependência que ligavam os homens entre si. Alguns podiam ser identificados como uma forma de escravidão, mesmo que estivessem longe de responder aos critérios impostos pela definição jurídica.

O funcionamento da realeza egípcia baseava-se em um elemento essencial – que aproxima muito o estado de espírito dos trabalhadores egípcios ao dos construtores de catedrais na Idade Média: filho dos deuses e seu representante na Terra, o faraó, no ápice da pirâmide social, garantia a vida e assegurava a cada um sua subsistência. Em troca desses benefícios, ele estava no direito de exigir dos súditos seu trabalho, de modo que cada um participava da grande obra coletiva.

Ainda por cima, por mais árduo que fosse o trabalho, contribuir para a edificação dos monumentos destinados ao futuro solar do rei ou à manutenção do equilíbrio cósmico permitia se apropriar de uma parcela das prerrogativas habitualmente reservadas ao personagem real. Enfim, fato sem dúvida revelador do sucesso do sistema faraônico, a coesão social passava pelo pertencimento a um Estado cuja organização quase militar era centrada na acumulação de riquezas, produzidas por uma mão de obra particularmente móvel com status sociais extremamente diversos.

Em um estudo especialmente instrutivo intitulado “Les noms de l’esclave en egyptien” (Os nomes de escravos em egípcio), o egiptólogo Jules Baillet elaborou uma lista dos vocábulos utilizados nos textos faraônicos para expressar a ideia de escravidão. Eis o que ele constatou: na língua egípcia, não existem palavras para designar o escravo no sentido estrito e, embora muitos termos expressem a sujeição, “nenhum corresponde exatamente à ideia de servidão”, tal como definida na Grécia ou em Roma. Daí sua pergunta: “O que é um estado social se nenhuma palavra o designa?”

Evidentemente, se a palavra não existe, o mesmo ocorre com o status. Entre os muitos termos enumerados por Baillet, dois são mais comumente traduzidos por “escravo” entre os autores favoráveis à tese da existência da escravidão no Egito: hem ebak, duas palavras que parecem totalmente sinônimas na língua egípcia e que se pode, de maneira menos categórica, interpretar por “servo”, e mesmo “dependente”. Em egípcio, o sacerdote é um hem netjer, um “servo de deus”, e, como observa Bernadette Menu, grande especialista nas questões de direito no Egito antigo, um vizir se consideraria o bak do faraó, seu “devoto” de alguma maneira. Segundo Bernadette, a noção de escravidão não responde a uma necessidade egípcia. À luz dos textos jurídicos, parece claramente que o indivíduo hem ou bak era um homem livre, perfeitamente integrado à sociedade, dispondo de um estado civil, titular de direitos e devedor de obrigações idênticas às do resto da população: embora pudesse se casar, ter posses, vender, contratar ou entrar na Justiça, ele não podia escapar do pagamento de impostos e ao regime de corveia (trabalho gratuito).

Paralelamente, estão conservados vestígios nos arquivos, sobretudo da Época Baixa (por volta do século VI antes da nossa era), de contratos relativos à venda ou à locação de indivíduos dependentes, tema muito controverso entre os egiptólogos: trata-se do que chamamos comumente “escravidão por dívida”, cuja negociação se referia a serviços temporários, avaliados e quantificados previamente pelos interessados.

Um homem endividado se colocava a serviço de um mestre para saldar sua dívida, até que a soma fosse integralmente reembolsada. Depois, os dois homens podiam se entender, por meio de um contrato escrito, validado juridicamente e aceito pelas duas partes. Foi o caso de um indivíduo chamado Peftouâoukhonsou, cultivador por conta própria, que entrou para o serviço de Nessemteu para pagar despesas médicas. Uma vez paga a dívida, ele decidiu continuar trabalhando, mas dessa vez remunerado, o que foi objeto de um novo contrato, renovado na sequência.

Trabalhos agrícolas e canteiros de construção monopolizavam cotidianamente uma parte da mão de obra egípcia, fosse ela estrangeira ou recrutada entre a população local, no seio das classes trabalhadoras – em primeiro lugar, os camponeses. Em troca de rações diárias e de um salário mensal – as fontes dissociam bem essas duas remunerações complementares –, os contratados deveriam fornecer determinada quantidade de trabalho. Salário e tarefa eram negociados antecipadamente e por tempo determinado. Era o regime do trabalho obrigatório, o da corveia: o indivíduo não escolhia sua tarefa, mas era pago regularmente pelo trabalho efetuado. É o que revela um documento muito interessante, o papiro Reisner I, datado do reino de Sesóstris I (em torno de 1970-1928 antes da nossa era), no início da XIIª dinastia, durante o Médio Império.

Referindo-se aos trabalhos de construção do reino, o papiro apresenta dados cifrados sobre as rações, os recrutados, as equipes e os trabalhos realizados. Para a maioria, os homens – oriundos da mão de obra das terras agrícolas pertencentes ao Estado – eram trabalhadores destinados às tarefas mais árduas: transporte dos blocos e fabricação de tijolos crus. Reagrupados em equipes de dez trabalhadores dirigidos por um capitão, eles recebiam diariamente um quilo de pão – que constituía a moeda de troca – e alguns extras por ordem real. As listas apresentam alguns artesãos especializados, mais bem remunerados, e contramestres que executavam as ordens dadas pelo vizir, responsável pelos trabalhos de construção perante o faraó. O documento revela o caráter muito regulamentado dessa organização e a extrema mobilidade da mão de Obra sujeita à corveia, que não cessava de se deslocar de um canteiro para outro, dependendo da necessidade.

A partir do Novo Império, além do Estado, qualquer pessoa podia, pagando uma remuneração, alugar os serviços de um terceiro por dia, ou em frações: meio dia, um quarto de dia, uma hora se necessário. Foi o caso do vaqueiro Messouia, que, sob os reinos de Amenófis III e de Akhenaton (XVIIIª dinastia, de 1550 a 1292 antes da nossa era), alugava mulheres para fabricar tecidos. Os contratos – cujo termo hieroglífico pode ser traduzido por “troca a título oneroso” – engajavam essas trabalhadoras por períodos que variavam entre dois até muitos dias, com tarifa diária de dois shâtis.

No papiro Harris I, Ramsés III (que reinou por volta de 1198 a 1168 antes da era cristã) explica como ele “reduziu a pó” os beduínos da Ásia, pilhando seu acampamento, levando seu gado, bens e prisioneiros, e os oferecendo aos deuses “para serem utilizados como servos de seu domínio”. Bem mais cedo, sob o Antigo Império, a Pedra de Palermo (sobre a qual foram gravados os anais reais) revela listas impressionantes de butins de guerra: sob a IVª dinastia, Snefru (em torno de 2700 a.C.) trouxe da Núbia 200 mil cabeças de gado e 7 mil cativos, imediatamente empregados nas explorações agrícolas. Exemplos desse tipo são muito numerosos nas fontes egípcias, em particular no Novo Império, onde o Egito conquistador submete seus vizinhos à força, no espírito de trazer butim e prisioneiros. Estes últimos eram destinados a engrossar os efetivos do exército e os domínios divinos ou reais para executar trabalhos agrícolas, artesanais e domésticos.

Desde essa época, a política egípcia visava integrar esses cativos à sociedade, oferecendo-lhes uma educação que recebiam no seio das fortalezas reais. Rompidos com seu meio de origem, os prisioneiros adotavam um nome egípcio e se lançavam no aprendizado do “falar como aqueles que seguem o rei, de modo que abandonem sua língua e andem no bom caminho sem olhar para trás”, antes de serem destinados a um templo ou a um domínio real onde fariam um trabalho remunerado. Tratava-se de uma acumulação de homens condenados a servir nas engrenagens das estruturas econômicas egípcias. Os cativos de origem principesca se uniam geralmente ao círculo real, onde às vezes exerciam altas funções.

Esses homens, chamados, no momento de sua captura, de hâqou ou seqerou-anhkou – palavras que se aplicavam aos cativos, aos prisioneiros –, se tornavam, após uma egipcianização bem-sucedida, hemou ou bakou, o que nos leva a pensar que não recebiam um status de escravo. Embora a onipresença da iconografia real mostrasse o faraó em toda a sua majestade esmagando os inimigos, em uma visão de mundo em que os países estrangeiros eram seus vassalos e os adversários rebeldes, destinados a morrer, o estrangeiro, a partir do momento que estivesse integrado à sociedade egípcia, era tratado exatamente como um egípcio. Isso era particularmente verdadeiro para os cativos que entravam como servos na casa de um particular graças a um presente do rei a um homem merecedor. Muitas vezes acolhidos com família e filhos, esses dependentes rapidamente faziam parte da casa, na qual permaneciam em geral por toda a vida. Encontra-se também essa integração no domínio militar.

Além dos soldados de carreira, os contingentes eram compostos por corpos de mercenários constituídos “pelos melhores entre os cativos que Sua Majestade fez nos campos de batalha”. Um documento que remonta aos primeiros anos do reino de Ramsés II (de 1300 a 1235 antes da nossa era), atribuído a um escriba encarregado de efetuar a repartição dos víveres entre os soldados de uma mesma unidade quando de uma campanha militar na Síria, mostra que os efetivos contavam com 62%de estrangeiros contra apenas 38% de egípcios.

A partir do reino de Tutmés III (de 1504 a 1450 antes da nossa era), as legiões estrangeiras reuniam essencialmente núbios, asiáticos, líbios, hititas e os habitantes dos países banhados pelo mar Egeu. Esses soldados eram reunidos em unidades e dirigidos pelos responsáveis pelas tropas estrangeiras ou mesmo por nativos. Os textos confirmam que, tendo provado sua lealdade ao faraó após sua chegada ao Egito, eles gozavam do status de homens livres.

O papiro Wilbor, datado do ano 4 do reinado de Ramsés V (1145 antes da nossa era), é um documento fiscal que contém um levantamento das terras com cultivo de trigo entre Minieh e o Fayum e traz também preciosas informações sobre os mercenários estrangeiros. Ele explica que, sob as XIXª e XXª dinastias, por ordem do rei, os prisioneiros de guerra se instalaram com suas famílias nas colônias militares. Reagrupados por etnias, eles gozavam das mesmas vantagens que os soldados egípcios e, como estes, pagavam impostos e possuíam terras que exploravam por conta própria. Nesses campos moravam os téhérou – piratas do mar Egeu –, núbios e sardanas da Ásia Menor, estes últimos constituindo uma tropa de elite destinada à guarda do soberano a partir de Ramsés II. Esses exemplos demonstram como a questão da escravidão no Egito faraônico é complexa. Somente um estudo sistemático das fontes jurídicas à nossa disposição permitirá esclarecer melhor os diferentes níveis de dependência que estruturavam a sociedade egípcia – que eram particularmente numerosos, embora nenhum deles possa ser comparado à escravidão segundo a acepção greco-romana do termo.


Aude Gros de Beler. Cativos, sim; escravos, não. In: Revista História Viva. Grandes Temas. Nº 46. p. 46-51.

NOTA: O texto "Cativos, sim, escravos, não: o trabalho no Egito antigo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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