Diz o dicionário que a sodomia é
o “coito anal, sobretudo entre homens, ou seja, o acto praticado por um
sodomita, que também se define como “pederasta” ou como “natural da antiga
cidade de Sodoma”. De acordo com o Gênesis bíblico, Sodoma e a sua gêmea Gomorra
erguiam-se no fértil vale do Jordão, rodeadas de fontes e jardins onde se
envolviam os sodomitas fazendo das suas. Alguém contou tudo a Javé, que o
comentou a Abraão: “O clamor contra Sodoma e Gomorra cresceu muito e o seu
pecado agravou-se ao extremo; vou ver se as suas acções correspondem ou não ao
clamor que chegou até mim contra eles.” (Gênesis, 18: 20-21)
O tremendo Deus dos Hebreus deve
ter-se enfurecido de tal modo ao confirmar aqueles clamores, que tomou a
decisão irrevogável de arrasar Sodoma com todos os seus descarados habitantes. Abraão
pede-lhe que não paguem os justos pelos pecadores e, durante uma negociação sem
tréguas, chegam a acordo para salvar o único homem justo, Lot, que por acaso
era sobrinho de Abraão. O passo seguinte, Gênesis 19, tem início com a chegada
a Sodoma de dois anjos de Javé, que vão avisar Lot do que se avizinha e lhe
dizem para fazer os preparativos necessários. Chega a hora do crepúsculo e,
como Lot já estava radicado há algum tempo em Sodoma, convida-os a pernoitar em
sua casa. Oferece-lhes uma bacia para lavarem os pés e prepara as omnipresentes
fogaças de pão ázimo para o jantar. No momento em que se vão deitar,
apresentam-se à porta da casa os homens de Sodoma, “moços e velhos, todos sem
excepção”. Entre eles e Lot estabelece-se o seguinte diálogo:
“... Onde estão os homens que
vieram para tua casa esta noite? Trá-los para que os conheçamos.
- Por favor, meus irmãos, não
façais semelhante maldade. Vede, tenho duas filhas virgens; vo-las darei; fazei
com elas o que vos apetecer; mas a estes homens não façais nada, porque se
acolheram sob o meu teto.
- Cala-te! Vem agora um
estrangeiro dar-nos ordens? Vamos tratar-te pior do que a eles.” (Gênesis 19,
5-9).
Lot luta violentamente com os
sodomitas para salvar a sua honra e, neste momento, os seus hóspedes puxam-no
para dentro. Depois, cegam todos os homens de Sodoma, “que já não conseguiram
encontrar a porta”. Fica claro quais eram as intenções que o autor lhes atribui
relativamente aos anjos do senhor e ao seu corajoso protector. O verbo “conhecer”
é usado com freqüência nas Escrituras para aludir ao acto sexual, como, por
exemplo, na história de Adão e Eva. Neste caso, torna-se evidente esse
significado, quando Lot propõe entregar as suas duas filhas “que não conheceram
homem” em vez de entregar os seus hóspedes para que os sodomitas “os conheçam”.
A destruição de Sodoma e Gomorra, John Martin
O final da história já é
conhecido: Javé proibiu Lot e a sua família de olharem para trás durante a sua
fuga e destruiu com uma chuva de fogo e enxofre as duas cidades, todo o vale do
Jordão e todos os seres vivos que nele moravam. A mulher de Lot foi a única que
se voltou para ver aquele desastre e foi transformada numa estátua de sal. O
facto de ser ela a cair em tentação e não Lot ou o seu genro poderia ser uma
demonstração de misoginia dos autores hebraicos, que, por outro lado, impregna
todo o Antigo Testamento. Também não se diz explicitamente que Sodoma havia
sido castigada por praticar a homossexualidade e pode até entender-se que o que
provocou a fúria de Javé foi um desvio religioso para o paganismo (talvez o
mais grave pecado bíblico) ou a egoísta falta de hospitalidade dos seus
habitantes, que se negavam a partilhar aquele éden terreno e maltratavam os
forasteiros. O livro bíblico da Sabedoria, que os gregos atribuíram a Salomão,
explica no último capítulo a razão do castigo dos sodomitas: “Os que tinham
praticado tão detestável falta de hospitalidade. Porque não quiseram receber os
estrangeiros que chegavam [...] E sobre o castigo então recebido, tiveram outro
final por terem acolhido com tão má-vontade os estrangeiros” (Sabedoria, 19:
13-14). Em qualquer caso, a história de Sodoma não só passou ao dicionário para
definir uma conduta sexual, mas também foi e é utilizada pela homofobia
religiosa para provar a censura divina à sua prática.
TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial
Estampa, 2006. p. 74-76.
NOTA: O texto "Os anjos de Sodoma" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
NOTA: O texto "Os anjos de Sodoma" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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