[...] uma das primeiras coisas que chamava a atenção dos europeus era a nudez dos índios. Oriundos de uma cultura na qual o uso de roupas pesadas que recobriam todo o corpo era a regra social e moral e o pudor era imprescindível, a nudez dos índios foi uma surpresa agradável para uns e chocante para outros. Segundo o Gênesis bíblico - referência fundamental da cultura europeia -, o primeiro efeito do pecado de Adão e Eva foi a vergonha da própria nudez e isto deu início ao hábito de os seres humanos cobrirem o corpo. O encontro de homens que andavam sem a mais leve noção de culpa, e mantinham costumes sexuais mais liberais que os dos europeus convenceu muitos destes de que se encontravam perante uma parcela da humanidade que não teria caído em pecado. Daí a racionalização posterior de que ao sul do Equador não existia pecado e que tudo era lícito tanto do ponto de vista sexual assim como as mais sanguinárias violências.
A imagem mais antiga do indígena conhecida na Europa é a de Jean de Léry, tão bem descrita que podemos visualizá-la de imediato:
Se quiserdes agora figurar um índio, bastará imaginardes um homem nu, bem conformado e proporcionado de membros, inteiramente depilado, de cabelos tosquiados como já expliquei, com lábios e faces fendidos e enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas perfuradas e igualmente adornadas, de corpo pintado, coxas e pernas riscadas de preto com o suco de jenipapo, e com colares de fragmentos de conchas penduradas ao pescoço. Colocai-lhe na mão seu arco e suas flechas e o veres retratado bem garboso ao vosso lado.
Outras vezes, os índios untavam o corpo ou partes dele com resinas e aplicavam penas verdes, amarelas ou vermelhas, com guizos de sementes nos pés.
Souza fala do costume de cortar os cabelos na testa e nas orelhas, deixando-os mais longos atrás. Outros arrepiavam o cabelo para cima com resina, pregavam peninhas amarelas e contas brancas. Como enfeite usavam, por vezes, saiotes de penas de ema, cocares de penas coloridas muito bem-feitos e colares de dentes de inimigos.
As mulheres não furavam os lábios, usavam sim braceletes e colares de contas de búzios ou de osso e pintavam o rosto com os mais variados desenhos. De maneira geral, seus enfeites eram bem mais discretos que os dos homens. Depilavam as sobrancelhas e o corpo e usavam cabelos longos, pelos quais tinham grande apreço.
[Banhos] Um dos costumes nativos que mais surpreenderam os europeus foi o de tomar banho todos os dias, e em alguns mais de uma vez, pois na Europa não havia esse costume. Ao contrário, lá acreditava-se que "muito banho" fazia mal à saúde.
Quando eram obrigados pelos brancos a usar roupas, muitos índios aí sim ficavam doentes; banhavam-se vestidos e demoravam a secar ou usavam panos não tão limpos nos quais proliferavam bactérias e fungos. Os índios resistiam em usar roupas alegando que atrapalhavam a realização de suas atividades.
[Bebedeiras] As bebedeiras rituais periódicas dos índios, que duravam vários dias durante os quais só bebiam, sem se alimentar, levavam-nos a um frenesi. Nessas ocasiões, agrediam-se mutuamente, resolvendo velhos agravos e, por vezes, chegavam a provocar até o incêndio da aldeia. O hábito de beber, a poligamia e a liberdade sexual das moças não eram censurados pelos colonos que os encorajavam e os adotavam. Os jesuítas, entretanto, percebendo a impossibilidade de converter e aculturar os índios sem o abandono ou controle desses hábitos, puseram-se a combatê-los incansavelmente pela catequese, chegando a apelar para o apoio da força militar dos administradores coloniais.
[Família e educação] A célula básica da aldeia era a família nuclear, que vivia em um espaço determinado juntamente com agregados eventuais (prisioneiros ou parentes). A maioria dos homens tinha apenas uma esposa, mas alguns, como os principais (chefes) e certos guerreiros e caçadores destacados, podiam desposar mais de uma mulher. Quanto mais esposas, mais vantagens para o homem que se beneficiava do trabalho delas. Cada esposa ocupava um espaço específico na cabana e tinha sua própria horta para cuidar.
[...]
Hierarquicamente, as mulheres eram inferiores aos homens e tinham de se submeter às vontades dos principais e dos mais velhos (pai, tio, marido). Quando necessário, eram dadas em casamento para o fortalecimento de alianças políticas.
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Algumas nativas ofereciam favores sexuais aos portugueses em troca de produtos e enfeites.
Antes do casamento, diferentemente do pregado pela moral cristã, as índias tinham liberdade sexual e não precisavam preocupar-se em manter a virgindade, que não era um valor entre os nativos. Thévet registrou ser muito raro que, entre os nativos, uma jovem se casasse virgem. Após o casamento, entretanto, esperava-se que se mantivessem fiéis aos maridos.
Casar-se, conforme Léry, era simples: desejando unir-se a uma mulher, solteira ou viúva, um varão perguntava-lhe sobre sua vontade, se ela aceitasse, depois de obtida a permissão do pai ou do parente mais próximo, já eram considerados casados por todos, sem cerimônias ou promessas de união perpétua.
Espantava os europeus que o divórcio entre os índios pudesse acontecer simplesmente se um dos cônjuges assim decidisse. Relações sexuais entre parentes (irmãos, sobrinhos e tios) também não era considerado um delito muito grave. A homossexualidade masculina também era relativamente aceita. Muitos cronistas europeus, comparando a realidade dos costumes indígenas com suas verdades cristãs, acusaram os nativos de serem bárbaros e luxuriosos.
Os filhos eram amamentados por mais de um ano pelo menos. As mães não deixavam seus bebês nem mesmo quando iam trabalhar na roça.
Para educar as crianças, os adultos preferiam utilizar-se do exemplo a empregar castigos físicos. Se viam seus filhos sendo castigados fisicamente por algum branco, zangavam-se e imediatamente procuravam levá-lo embora. O mesmo costume de respeitar a vontade do indivíduo para trabalhar estendia-se às crianças, e qualquer tentativa dos jesuítas de mudá-lo por meio de repreensões severas, gritos ou pancadas resultava na imediata reação dos pais indignados.
MESGRAVIS, Laima e PINSKY, Carla Bassanaezi. O Brasil que os europeus encontraram. São Paulo: Contexto, 2000. p. 44-49.
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