Pintura rupestre. Caverna da província de Santa Cruz, Argentina
[...] Durante muitos séculos, acreditou-se, no Ocidente, que o mundo havia sido criado por Deus há poucos milhares de anos e que os primeiros seres humanos teriam sido Adão e Eva. Por incrível que pareça, essa explicação da origem do homem só foi contraposta em meados do século XIX! No início do século, houve já uma primeira tentativa de interpretação dos períodos mais recuados da vida humana. A partir de 1816, Christian J. Thomsen, o primeiro conservador do Museu Nacional Dinamarquês, deu ordem às sempre crescentes coleções de antiguidades. Assim o fez, classificando-as em três idades, da Pedra, do Bronze e do Ferro. A ideia era, realmente, muito simples: antes de o homem aprender a usar esses metais, vivera numa idade da pedra e, após ter aprendido, utilizou-se de início, apenas o cobre e o bronze, só mais tarde passando ao ferro. Apenas com a teoria do Evolucionismo haveria, no entanto, uma verdadeira revolução no entendimento da questão das origens do homem.
Em 1809, nascia Charles Darwin, que se formaria em Teologia, em Cambridge, em 1831, e mais tarde se interessaria por Entomologia e Botânica, tornando-se um naturalista, viajante dos rincões mais afastados, como o Atlântico Sul e o Pacífico, sempre pesquisando a natureza. Publicou diversas obras com suas considerações sobre o que conheceu, como Viagem de um naturalista ao redor do mundo (1839). Em 1859, Darwin publicou seu livro mais famoso, A origem das espécies, obra que teve um impacto enorme, tendo sido vendida toda a primeira edição, de 1.250 exemplares, em um único dia! A segunda edição, com 3 mil exemplares, esgotou-se em uma semana.
Na introdução do livro, Darwin afirmava que "as espécies não são constantes, mas as que pertencem a um mesmo gênero provêm, em linha direta, de outras, em geral já extintas, assim como as variedades reconhecidas de uma determinada espécie provêm desta espécie". A espécie humana passou a ser vista como parte do reino animal e o homem como resultado de uma evolução e não de uma criação pronta e acabada. Em 1871, Darwin publicou A origem do homem e a seleção sexual, completando a proposta de uma interpretação alternativa àquela teológica da origem humana.
De início, a reação ao Evolucionismo de Darwin foi violenta por parte dos clérigos e também de todos os que não aceitavam que o ser humano não havia sido criado por Deus já da forma que nós somos. Com o passar do tempo, entretanto, começou-se a difundir a visão de que o ser humano é um animal e, mesmo para os que crêem no relato bíblico - excetuando-se os fundamentalistas - a criação de Adão e Eva passou a ser aceita como uma metáfora, não como um fato histórico. Apenas com essa revolução no conhecimento pôde surgir o interesse e o estudo dos antigos vestígios humanos.
Na Europa, o estudo dos antepassados dos povos europeus já existia por meio da leitura dos autores gregos e romanos que a eles se referiam. Os germanos haviam sido citados pelos gregos e, mais extensamente, pelos romanos - como na obra clássica Germânia, do historiador romano Tácito. Os gauleses foram bem descritos pelo general romano Júlio César em sua obra Guerra das Gálias. No século XIX, além de textos como estes, começaram-se a estudar os vestígios materiais, encontrados na França e na Alemanha, do que passaram a ser chamadas de culturas proto-históricas, "da primeira história".
Foi no século XIX que surgiu o conceito de História como uma ciência voltada para o estudo do passado a partir dos documentos escritos. Definindo que a História se faz com documentos escritos, convencinou-se que a escrita seria o início da História. Em diferentes regiões do planeta, a escrita começou a ser usada em diferentes momentos, pelo que a História começaria há 5 mil anos no Egito e na Mesopotâmia e há 3 mil na Grécia. Proto-História referia-se, portanto, ao primeiro momento em que se usava a escrita e, em particular, o termo foi usado com relação às sociedades que ainda não usavam a escrita (como no caso dos gauleses e dos germanos antigos), mas que foram descritas por povos letrados.
E o passado mais distante? Como defini-lo? Com o Evolucionismo, começou-se a aceitar a ideia de que haveria restos muito mais antigos associados ao homem. Em 1856, no vale do rio Neander, perto de Düsseldorf, na Alemanha, encontrou-se a calota craniana de um homem primitivo, que ficou conhecido como "Homem de Neandertal". Em 1865, surgiam os termos Paleolítico (Idade da Pedra Antiga) e Neolítico (Idade da Pedra Recente). Abriam-se, assim, as portas para o estudo da Pré-história, definida como todo o imenso período anterior à invenção da escrita.
A Pré-história trata dos últimos 100 a 200 mil anos, período em que existe a espécie humana, o Homo sapiens sapiens, e também dos milhões de anos anteriores, em que existiram os hominídeos, espécies que antecederam à nossa: 99,9% do passado, portanto. Apenas 0,1% do tempo da existência do homem e dos seus ancestrais na cadeia evolucionária corresponde ao período em que existe a escrita.
No continente americano, entretanto, a definição de pré-história tem como referência tradicional o período anterior à chegada dos europeus ao continente, em fins do século XV. Os europeus chamaram a sua presença na América de "história" e reservaram para todo o período que veio antes o termo "pré-história", ainda que hoje se saiba que se usava a escrita na América já antes da vinda dos colonizadores. Os maias, civilização que se desenvolveu no México e na América Central, possuíam uma escrita muito elaborada, embora usada quase sempre em contexto religioso, ainda por ser totalmente decifrada. Os incas usavam cordas para registrar eventos, chamados quipos. Na verdade, muitos povos ameríndios tinham sistemas de registros comparáveis à escrita, como os povos nambiquaras e tupis., - na forma de pinturas corporais, adereços e decorações de objetos - como propôs recentemente o americanista britânico Gordon Brotherston.
No continente americano, entretanto, a definição de pré-história tem como referência tradicional o período anterior à chegada dos europeus ao continente, em fins do século XV. Os europeus chamaram a sua presença na América de "história" e reservaram para todo o período que veio antes o termo "pré-história", ainda que hoje se saiba que se usava a escrita na América já antes da vinda dos colonizadores. Os maias, civilização que se desenvolveu no México e na América Central, possuíam uma escrita muito elaborada, embora usada quase sempre em contexto religioso, ainda por ser totalmente decifrada. Os incas usavam cordas para registrar eventos, chamados quipos. Na verdade, muitos povos ameríndios tinham sistemas de registros comparáveis à escrita, como os povos nambiquaras e tupis., - na forma de pinturas corporais, adereços e decorações de objetos - como propôs recentemente o americanista britânico Gordon Brotherston.
Apesar disso, generalizou-se o uso do termo Pré-história da América para todo o período anterior a 1492, data da chegada de Colombo ao continente. Como se explicaria a continuidade desse uso do termo ainda hoje, sabendo-se que havia escrita entre os nativos antes dessa data?
Os conceitos de Pré-história na Europa e na América diferem muito, apesar de os pesquisadores dos dois lados do Atlântico usarem o mesmo termo. Isso se explica facilmente se buscarmos as origens desses estudos lá e cá.
Na Europa, a Pré-história foi sempre definida com referência à História, como o período anterior à escrita, estudado pelos "pré-historiadores", pesquisadores preocupados com os próprios antepassados europeus. Daí a busca dos antigos germanos, mas também dos antigos homens do Paleolítico, considerados seus antecessores.
No continente americano, o estudo da Pré-história surgiu em outro contexto. Nas Américas, a vinda dos europeus quase sempre significou o massacre e a escravização dos ameríndios após duras batalhas e surtos epidêmicos e, mesmo quando e onde houve grande miscigenação, como no caso do Brasil, a referência dos estudiosos sempre foi a Europa e os europeus. A História era e, em certo sentido, continua sendo, a História da civilização europeia (ou ocidental), não da indígena. O interesse pelo conhecimento da vida dos indígenas levou, no século XIX, ao surgimento de uma outra ciência, a Antropologia, voltada para o estudo das línguas, sociedades, costumes e tradições ameríndias. O estudo do passado dessas sociedades ficou por muito tempo a cargo dos antropólogos especializados na análise dos vestígios materiais, os arqueólogos. Nesse contexto, no continente americano adotou-se o termo Pré-história para se referir ao período anterior à chegada de Colombo.
[...] O que entendemos por Pré-história do Brasil? Do nosso ponto de vista, não se pode fugir das definições correntes, mas, ao mesmo tempo, não se deve aceitá-las de forma acrítica. Separar a História da Pré-história pelo critério do "uso da escrita" é inconsistente, no caso da América; assim como é artificial caracterizar a Pré-história como o estudo das origens de "outros povos", pois, no caso do Brasil, ao menos um terço da população possui antepassados indígenas e, além disso, boa parte das nossas heranças culturais é ameríndia. Ademais, grande parte do que hoje constitui o Brasil ficou alheia ao mundo do colonizador, concentrado na costa: a maior parte da Amazônia (uma área imensa), mas mesmo o que chamamos Centro-Oeste, até a recente Marcha para o Oeste, na década de 1930.
Por tudo isso [...] adotamos uma definição mais ampla e menos restrita e comprometida de Pré-história do Brasil, partindo das origens mais remotas (o que nos levará ao Velho Mundo), os percursos pelo continente americano até o povoamento do território barsileiro, passando pelas culturas que aqui floresceram até chegarmos aos ameríndios contemporâneos. E essa Pré-história do Brasil compreende a existência de uma crescente variedade linguística, cultural e étnica, que acompanhou o crescimento demográfico das primeiras levas constituídas por umas poucas pessoas (centenas ou poucos milhares) que chegaram à região até alcançar muitos milhões de habitantes na época da chegada da frota de Cabral. Também precisamos compreender que, para que isso ocorresse, não houve apenas um processo histórico, mas numerosos, distintos entre si, com múltiplas continuidades e descontinuidades, tantas quanto as etnias que se foram constituindo ao longo dos últimos 30, 40, 50, 60 ou 70 mil longos anos de ocupação humana das Américas.
FUNARI, Pedro Paulo e NOELLI, Francisco Silva. Pré-história do Brasil. São Paulo: Contexto, 2002. p. 11-15. (Repensando a História).
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