"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 12 de abril de 2011

O contexto pós-abolição e a atuação dos negros na sociedade brasileira


Após a abolição da escravidão, os negros africanos e seus descendentes tiveram de enfrentar o problema do ingresso no mercado de trabalho livre. Nessa mesma época, o governo republicano (representante dos interesses dos grandes cafeicultores) promoveu uma campanha de branqueamento da população, visando à europeização do Brasil e a eliminação da herança biológica e cultural africana.

Para a elite brasileira, o negro, por conta do seu "caráter bárbaro" e "estado de selvageria", era um empecilho à formação de uma nação, pretendida o mais próximo possível da civilização. Portanto, o negro deveria ser excluído da sociedade brasileira, sendo proibida a sua entrada no país. O ideal da evolução étnica brasileira seria a pureza da raça branca. Por isso, concomitantemente à eliminação do negro, a imigração europeia foi incentivada com o intuito de promover o branqueamento da população. O governo republicano, além de incentivar, destinou recursos próprios para a imigração europeia, proporcionando, em grande medida, a exclusão dos negros do mercado de trabalho formal.

Italianos, portugueses, espanhóis e alemães foram chegando em grandes levas e encaminhados para trabalhar tanto nas áreas rurais, quanto urbanas do Brasil, mas principalmente como colonos nas regiões mais prósperas, isto é, nas fazendas do centro-oeste de São Paulo. Aos negros sobraram as tarefas menos qualificadas e mais penosas e, em geral, sem qualquer tipo de contrato firmado, sendo, portanto, empregados e pagos por cada serviço prestado.

A mesma situação se repetia nas cidades. Aí, os negros eram subempregados em atividades domésticas, no transporte, na limpeza das ruas, no carregamento de cargas e na venda de jornais. A exclusão racial não aconteceu apenas no âmbito do trabalho. Pode-se notar também que os negros foram excluídos geograficamente. Por causa da sua precária condição financeira, eles foram obrigados a residir nas regiões periféricas das cidades, habitando cortiços e pequenas casinhas de aluguel nos bairros afastados do centro paulistano e favelas que surgiam nos morros cariocas.

O desenvolvimento econômico, sobretudo em São Paulo, gerou, nas primeiras décadas do século XX, o aumento do setor industrial, acarretando, consequentemente, o crescimento urbano, a expansão do número de profissionais liberais e a formação das classes operária e média., compostas em sua maioria por brancos. No entanto, os negros, mesmo que de forma limitada, conseguiram adentrar nessas classes, trabalhando em algumas indústrias, ferrovias, empresas responsáveis pela eletricidade e pelo sistema de bonde, como a Light, a Tramway e a Power Company, e como jornalistas, músicos, advogados, literatos e funcionários públicos.

Os imigrantes europeus logo se organizaram para reivindicar melhores condições de trabalho, formando o movimento operário. Influenciados pelo anarquismo e pelo socialismo e com o objetivo de melhor enfrentar os empregadores e o governo, que os exploravam cada vez mais, os europeus não promoveram a segregação racial dentro do movimento. Reconhecendo o perigo de enfraquecimento em caso de divisões entre os trabalhadores, eles incorporaram os operários negros.

Os negros participaram até mesmo das lideranças no início do movimento operário em São Paulo. Os jornais organizados pela população negra também incentivaram os trabalhadores a participar do movimento operário. A Associação Auxiliadora das Classes Laboriosas foi fundada pelo líder negro Salvador de Paula, em 1891. Eugênio Wansuit, por exemplo, foi um dos organizadores da greve de trabalhadores das docas de Santos, em 1912.

Por volta da década de 1920, quando os trabalhadores imigrantes, organizados em associações políticas, passaram a reivindicar de maneira mais rigorosa e eficiente seus direitos e melhores condições de trabalho, acabaram perdendo a preferência dos empregadores e do governo, que deram mais oportunidades de emprego aos negros. Foi, sobretudo nessa época, que os negros conseguiram ingressar com mais intensidade nas indústrias e engrossar as fileiras do movimento operário.

Os negros pertencentes à classe operária, em geral, organizavam-se em associações, muitas vezes informais, com o objetivo de manifestar a sua cultura por meio da música, promovendo bailes, festas e encontros com seus companheiros de cor. Muitas dessas associações deram origem aos grupos carnavalescos e, mais tarde, às escolas de samba. Em 1914, por exemplo, foi criado, em São Paulo, o Grupo Carnavalesco Barra Funda (atual Camisa Verde), três anos depois surgiu o grupo de Campos Elíseos e, na década de 1920, o grupo Vai-Vai. No entanto, outras sociedades foram organizadas por negros que pertenciam à classe média e que não queriam se vincular àqueles grupos populares; é o caso do clube Luvas Pretas (1904) e do Kosmos (1908).

A imprensa brasileira no período pós-abolição costumava representar os negros de maneira depreciativa nos jornais e não fornecia espaço suficiente para divulgar eventos promovidos pelas comunidades e associações negras, tampouco para debater problemas e fazer reivindicações relativas a essa população.

Diante da falta de espaço na imprensa tradicional, os negros partiram para a imprensa alternativa e empenharam-se na criação de jornais feitos por eles próprios e que, além de divulgar a sua cultura, revelassem a luta pela igualdade de direitos e as suas reivindicações políticas. Vários jornais foram criados desde o final do século XIX: A Pátria (1889), O Menelick (1915), O Alfaiate (1918), O Kosmos (1922), Tribuna Negra (1928), Progresso (1928) e O Clarim da Alvorada (1928);

A imprensa negra preocupava-se em divulgar a situação de exclusão vivida pelos negros e promover a solidariedade étnica com o objetivo de diminuir as desigualdades. Além disso, denunciava o preconceito racial que assolava o Brasil, proibindo os negros de frequentar inúmeros recintos desde alguns restaurantes, clubes, cinemas até escolas e praças públicas. Também era responsável pela divulgação de notícias sobre a comunidade negra internacional, existindo troca de informações com associações e jornais norte-americanos, por exemplo.

Os jornais eram mantidos pelos assinantes, por arrecadações em festas e leilões e por anúncios de publicidade. Ademais, algumas associações negras financiavam essas edições e até mesmo publicavam seus próprios periódicos, como os jornais paulistanos O Quilombo, do Centro Cultural Henrique Dias, e A Protetora, da Sociedade Propugnadora 13 de Maio. Muitos exemplares eram distribuídos gratuitamente nos eventos dessas associações.

Os jornais eram produzidos por jornalistas amadores, profissionais liberais, artesãos, operários e funcionários públicos. Além de servir de instrumento político de denúncia da desigualdade e da segregação raciais e para a divulgação de eventos culturais, esses jornais exerciam um papel moralizador, combatendo os jogos, as bebidas e a vadiagem, e incentivando a honestidade, o trabalho e os bons costumes. Ainda exaltavam os grandes heróis negros José do Patrocínio, André Rebouças e Luís Gama, como exemplos a serem seguidos.

Ao longo do século XX, os negros atuaram também em associações culturais. No final da década de 1920, foram fundados os grupos teatrais negros Cia. Negra de Revistas e Cia. Bataclã Preta. Em 1927, foi criado o Centro Cívico Palmares, com o objetivo de montar uma biblioteca de livre acesso à comunidade negra. Com o decorrer do tempo, esse centro ampliou suas atividades e passou a promover conferências sobre temas que diziam respeito diretamente aos negros. No ano seguinte, criou uma campanha contra o decreto estadual que proibiu o ingresso de negros na Guarda Civil. A partir desse momento, as associações negras voltaram-se mais para a atuação política.

Em 1931, foi fundada por Henrique Cunha e José Correia Leite, a organização Frente Negra Brasileira, tendo grande receptividade em todo o Estado de São Paulo, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Essa organização promoveu cursos de alfabetização para adultos, ofereceu serviços na área jurídica - para resolver problemas como disputas de terras e trabalhistas -, e fundou uma escola, uma clínica médica e odontológica e uma cooperativa de crédito para a compra da casa própria.

Embora fosse contra a ideia da existência de uma democracia racial no Brasil, a Frente Negra Brasileira optou por seguir o integralismo - movimento de direita influenciado pelos fascismo, que defendia propostas das classes média e latifundiária brasileiras. Com isso, a ala de esquerda da comunidade desvinculou-se da associação e fundou o Clube Negro de Cultura Social e a Frente Negra Socialista.

Em 1938, num contexto de autoritarismo do Estado Novo, governado por Getúlio Vargas, no qual as organizações e os movimentos sociais eram fortemente reprimidos, a Frente Negra Brasileira e os jornais da imprensa negra acabaram extintos.

No entanto, mesmo sob o regime de ditadura de Vargas, algumas sociedades culturais e clubes negros permaneceram ativos e os desfiles das escolas de samba foram incentivados pelo governo, com a condição de se tornarem oficiais e controlados pelo Estado.

Após o fim do Estado Novo de Vargas, em 1945, o movimento negro retomou a sua força e, nesse mesmo ano, promoveu a Convenção Nacional dos Negros Brasileiros, a fim de apresentar propostas políticas à Assembléia Constituinte, que formularia a nova Constituição. A imprensa negra também ressurgiu com os jornais Alvorada, Senzala, O Novo Horizonte, entre outros.

Um ano antes, em 1944, foi fundado, por Abdias do Nascimento, um dos antigos representantes da Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental Negro (TEN) com o objetivo de combater a exclusão dos negros no teatro. Participaram também do TEN nomes como Grande Otelo, Ruth de Souza e Pixinguinha. Mas o movimento cresceu e, em 1945, Abdias do Nascimento e Francisco Solano Trindade fundaram o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, atuando também no campo político, revindicando o acesso aos direitos trabalhistas e à educação.

Em 1954, foi fundada a Associação Cultural do Negro, voltada para a organização de cursos, conferências e eventos culturais. Em ação conjunta com os grupos teatrais - Teatro Experimental do Negro e o Teatro Popular Brasileiro -, essa associação atuou através de atividades sociais, educacionais e culturais, visando promover a igualdade racial, reivindicando os direitos da população negra e da preservação da cultura afro-brasileiras.

Nas décadas de 1960 e 1970, os negros destacaram-se nas lideranças do movimento sindical e novos grupos foram fundados por artistas e intelectuais negros, como o Centro de Cultura e Arte Negra, que publicou, em 1978, os Cadernos Negros, uma série de coleções de poesias escritas por autores negros.

Nessa época, os jovens negros brasileiros começaram a participar mais de grupos e associações atraídos pelas notícias sobre o movimento negro internacional, em especial o Movimento pelos Direitos Civis nos EUA* e pelas lutas de libertação das colônias portuguesas na África.

Em 1978, o então chamado Movimento Negro Unificado (MNU) promoveu uma manifestação nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, contra o assassinato do trabalhador Robson Silveira da Luz e a proibição dos negros frequentarem o Clube de Regatas Tietê. Várias outras manifestações foram realizadas na Bahia, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. O MNU tinha por objetivo conscientizar a população negra da existência de desigualdades raciais e da necessidade de lutar contra a discriminação e de promover políticas públicas geradoras de melhores oportunidades aos negros nas áreas da educação, saúde, economia e cultura.

A partir desse momento, surgiram várias organizações de caráter não apenas cultural, mas político, que atuam até hoje na luta pelos direitos dos negros e pela igualdade racial. Como resultados dessa batalha pode-se citar a Lei n. 4.370, de 1998, que prevê cotas para artistas negros na publicidade, e a de n. 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História da África e cultura afro-brasileira nas escolas. Além de as universidades públicas do Rio de Janeiro, em 2001, terem aprovado cotas para afro-descendentes.

Ao mesmo tempo em que atuavam contra a discriminação racial e lutavam para ocupar mais espaços na sociedade brasileira, os negros preservavam a sua cultura através de manifestações como as congadas, maracatus, tambor-de-crioula, afoxés e blocos afros, do samba e do movimento hip hop.

* Na década de 1950, havia nos Estados Unidos uma lei de segregação racial que, entre outras coisas, obrigava os negros a ocuparem somente lugares reservados a eles em locais públicos. Em 1955, Rosa Parks foi presa por se recusar a dar o seu lugar a um homem branco dentro de um ônibus, em Montgomery, no Alabama. A comunidade negra, liderada por Martin Luther King (líder negro norte-americano, preso várias vezes e morto em 1968, ganhador do Prêmio Nobel da Paz por suas ideias e lutas pacifistas), uniu-se contra a lei de segregação e conseguiu torná-la inconstitucional. O Movimento dos Direitos Civis fez com que a sociedade norte-americana percebesse a existência de discriminação racial, que, além de ir contra os princípios liberais (base da sua política), também gerava a pobreza e o crime. A partir desse momento, surgiram vários movimentos de resistência liderados por negros contra a discriminação em todo o mundo.

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2008. p. 186-192. 

3 comentários:

  1. este é o texto de Mattos na integra ou vc fez um resumo?? Estou precisando do texto na integra, mas não consigo encontrar.

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    1. Poxa, isso é muito bom, Orides!! Muito obrigada!! Adorei seu blog, ja está em favoritos!

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