"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Uma festa brasileira na França

O profundo impacto que os indígenas brasileiros provocaram nos viajantes europeus ao serem vistos – desnudos, pintados, dançando (e eventualmente devorando uns aos outros) – nas praias do Novo Mundo, foi largamente amplificado assim que alguns deles foram levados para a Europa e exibidos nas cortes. O primeiro teria embarcado já na caravela que Cabral fez retornar a Portugal com a notícia da descoberta – pelo menos de acordo com o relato que o padre Simão de Vasconcelos escreveu em 1658 (mais de 150 anos depois daqueles acontecimentos, portanto): “E foi recebido com alegria do Rei e do Reino. Não se fartavam os grandes e pequenos, de ver e ouvir o gesto, a falla, os meneios daquele novo indivíduo da geração humana. Huns o vinhão a ter por um Semicapro, outros por um Fauno, ou por alguns daqueles monstros antiguos, entre poetas celebrados”.

A surpresa não foi exclusividade portuguesa: já em 1504, o francês Paulmier de Goneville levou para a França o filho de um líder Carijó, chamado Esomeriq. Ele seria apenas o primeiro de uma longa série de nativos conduzidos a Paris, Rouen e Dieppe durante as seis décadas em que os franceses freqüentaram as costas brasileiras, traficando pau-brasil e permanentemente dispostos a estabelecer uma colônia em pleno coração do território português, fosse no Rio, fosse no Maranhão.

Mas nenhuma iniciativa dos franceses envolvendo os nativos do Brasil pode ser comparada, em assombro e magnificência, à chamada “Festa Brasileira em Rouen”. Dispostos a impressionar o rei Henrique II e a rainha Catarina de Médici – e convencê-los a investir mais nas expedições ao Brasil -, os armadores e comerciantes de Rouen prepararam uma impressionante celebração quando da visita real à cidade, no dia 1º de outubro de 1550. Em uma área às margens do rio Sena, montaram uma autêntica maquete das terras brasileiras: as árvores foram enfeitadas com flores e frutos trazidos do Brasil, o cenário ficou repleto de micos, sagüis e papagaios. Pelo menos cinqüenta eram Tupinambás genuínos, trazidos da Bahia ou do Maranhão, especialmente para a comemoração. Os demais eram marinheiros normandos que conheciam bem o Brasil, fluentes em tupi e habituados no trato com os índios. As mulheres foram recrutadas entre as prostitutas locais.

Uma festa brasileira na França: a iluminura mostra (no canto à esquerda, entre as árvores) a representação dos indígenas brasileiros realizada para homenagear o rei Henrique II, em 1550, em Rouen, na Normandia. Artista desconhecido

Era mais do que uma exibição: era um quadro vivo. E, desde o início, havia ação: indígenas e figurantes caçavam, pescavam, namoravam nas redes, colhiam frutas e carregavam o pau-brasil. E então, subitamente, no clímax do espetáculo, a aldeia tupinambá foi assaltada por um bando de Tabajara – índios que, no Brasil, eram aliados dos portugueses. Ocas foram incendiadas, canoas viradas, árvores derrubadas. Houve um combate simulado, ainda que feroz, ao fim do qual os Tabajara haviam sido amplamente derrotados. Na platéia, além do rei e da rainha franceses, estavam também a rainha Mary Stuart, da Escócia, duques, condes e barões, os embaixadores da Espanha, representantes dos Habsburgos, de Portugal e da Inglaterra, bispos, prelados, cardeais e inúmeros príncipes, além de Nicolau Villegaignon, futuro líder da chamada “França Antártica” – todos assombrados com aquela espetacular representação da vida nos trópicos: o primeiro show brasileiro na Europa.

Durante décadas os indígenas brasileiros continuariam causando sensação na França. Em 1613, três deles tocaram maracás na composição que Gautier, um músico da corte, fez para homenagear os Tupinambá. Mais tarde, inspiraram outro tipo de homenagem – desta vez, filosófica.


BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 22-3.

NOTA: O texto "Uma festa brasileira na França" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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