Embora não tenha sido anunciada pelo heraldo trombeteiro,
pelas ruas de Madrid voa a notícia. Os inquisidores descobriram o culpado do
feitiço do rei Carlos. A feiticeira Isabel será queimada viva na praça Maior.
Toda a Espanha rezava pelo rei Carlos II. Ao despertar, o
monarca bebia sua poção de pó de víbora, infalível para dar forças, mas em vão:
o pênis seguia abobado, incapaz de fazer filhos, e pela boca do rei continuavam
saindo babas e hálito imundo e nem uma palavra que valesse a pena.
O malefício não vinha de certa xícara de chocolate com pó de
testículos de enforcado, como tinham dito as bruxas de Cangas, nem do próprio
talismã que o rei usava pendurado no pescoço, como acreditou o exorcista frei
Mauro. Houve quem dissesse que o monarca tinha sido enfeitiçado pela própria
mãe, com tabaco da América ou pastilhas de benjuy, e inclusive se rumoreou que
o mordomo-mor, o duque de Castellforit, tinha servido à mesa um presunto
misturado com unhas de mulher moura ou judia queimada pela Inquisição.
Os inquisidores tinham encontrado, finalmente, o redemoinho
de agulhas, grampos, caroços de cereja e louros cabelos de Sua Majestade, que a
feiticeira Isabel tinha escondido pertinho da alcova real.
Balança o nariz, balança o lábio, balança o queixo; mas
agora que o rei foi desembruxado, parece que os olhos dele se acenderam um
pouquinho. Um anão ergue o círio, para que o Rei contemple seu retrato, que há
anos pintou Carreño.
Enquanto isso, fora do palácio faltam pão e carne, peixe e
vinho, como se Madrid fosse uma cidade sitiada.
▬╡ஐ 1700, Madrid ஐ╞▬
Nunca pôde vestir-se sozinho, nem ler correntemente, nem
ficar em pé por conta própria. Aos quarenta anos, é um velhinho sem herdeiros,
que agoniza rodeado de confessores, exorcistas, cortesãos e embaixadores que
disputam o trono.
Os médicos, vencidos, tiraram de cima dele as pombas
recém-mortas e as entranhas de cordeiro. As sanguessugas já não cobrem seu
corpo. Não lhe dão de beber aguardente nem a água da vida trazida de Málaga,
porque só resta esperar a convulsão que o arrancará deste mundo. À luz das
tochas, um Cristo ensanguentado assiste, da cabeceira da cama, à cerimônia
final. O cardeal salpica água benta com o aspersório. A alcova fede a cera,
incenso, sujeira. O vento golpeia os pórticos do palácio, mal amarrados com
barbantes.
O levarão à morgue de El Escorial, onde o espera, há anos, a
urna de mármore que leva seu nome. Essa era a sua viagem preferida, mas há
tempos que não visita a própria tumba nem mostra o nariz nas ruas. Está Madrid
cheia de buracos e lixo e vagabundos armados; e os soldados, que mal e mal
vivem da sopa boba dos conventos, não se preocupam em defender o rei. Nas
últimas vezes em que se atreveu a sair, as lavadeiras do rio Manzanares e os
rapazes da rua perseguiram a carruagem e cobriram ele de insultos e pedradas.
Carlos II, com os vermelhos olhos arregalados, treme e
delira. Ele é um pedacinho de carne amarela, que foge entre os lençóis,
enquanto foge também o século e acaba, assim, a dinastia que fez a conquista da
América.
GALEANO, Eduardo. Memória do fogo: Os nascimentos. Porto
Alegre: L&PM, 2013. p. 269-270 e 273.
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