"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Carlos II, o enfeitiçado

Retrato do rei Carlos II da Espanha com armadura, Juan Carreño de Miranda


▬╡ஐ 1699, Madrid ╞▬

Embora não tenha sido anunciada pelo heraldo trombeteiro, pelas ruas de Madrid voa a notícia. Os inquisidores descobriram o culpado do feitiço do rei Carlos. A feiticeira Isabel será queimada viva na praça Maior.

Toda a Espanha rezava pelo rei Carlos II. Ao despertar, o monarca bebia sua poção de pó de víbora, infalível para dar forças, mas em vão: o pênis seguia abobado, incapaz de fazer filhos, e pela boca do rei continuavam saindo babas e hálito imundo e nem uma palavra que valesse a pena.

O malefício não vinha de certa xícara de chocolate com pó de testículos de enforcado, como tinham dito as bruxas de Cangas, nem do próprio talismã que o rei usava pendurado no pescoço, como acreditou o exorcista frei Mauro. Houve quem dissesse que o monarca tinha sido enfeitiçado pela própria mãe, com tabaco da América ou pastilhas de benjuy, e inclusive se rumoreou que o mordomo-mor, o duque de Castellforit, tinha servido à mesa um presunto misturado com unhas de mulher moura ou judia queimada pela Inquisição.

Os inquisidores tinham encontrado, finalmente, o redemoinho de agulhas, grampos, caroços de cereja e louros cabelos de Sua Majestade, que a feiticeira Isabel tinha escondido pertinho da alcova real.

Balança o nariz, balança o lábio, balança o queixo; mas agora que o rei foi desembruxado, parece que os olhos dele se acenderam um pouquinho. Um anão ergue o círio, para que o Rei contemple seu retrato, que há anos pintou Carreño.

Enquanto isso, fora do palácio faltam pão e carne, peixe e vinho, como se Madrid fosse uma cidade sitiada.

▬╡ஐ 1700, Madrid ╞▬

Nunca pôde vestir-se sozinho, nem ler correntemente, nem ficar em pé por conta própria. Aos quarenta anos, é um velhinho sem herdeiros, que agoniza rodeado de confessores, exorcistas, cortesãos e embaixadores que disputam o trono.

Os médicos, vencidos, tiraram de cima dele as pombas recém-mortas e as entranhas de cordeiro. As sanguessugas já não cobrem seu corpo. Não lhe dão de beber aguardente nem a água da vida trazida de Málaga, porque só resta esperar a convulsão que o arrancará deste mundo. À luz das tochas, um Cristo ensanguentado assiste, da cabeceira da cama, à cerimônia final. O cardeal salpica água benta com o aspersório. A alcova fede a cera, incenso, sujeira. O vento golpeia os pórticos do palácio, mal amarrados com barbantes.

O levarão à morgue de El Escorial, onde o espera, há anos, a urna de mármore que leva seu nome. Essa era a sua viagem preferida, mas há tempos que não visita a própria tumba nem mostra o nariz nas ruas. Está Madrid cheia de buracos e lixo e vagabundos armados; e os soldados, que mal e mal vivem da sopa boba dos conventos, não se preocupam em defender o rei. Nas últimas vezes em que se atreveu a sair, as lavadeiras do rio Manzanares e os rapazes da rua perseguiram a carruagem e cobriram ele de insultos e pedradas.

Carlos II, com os vermelhos olhos arregalados, treme e delira. Ele é um pedacinho de carne amarela, que foge entre os lençóis, enquanto foge também o século e acaba, assim, a dinastia que fez a conquista da América.

GALEANO, Eduardo. Memória do fogo: Os nascimentos. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 269-270 e 273.

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