Cabeça de índio, Henrique Bernardelli
"Guerreiro branco, Peri, primeiro de sua tribo, filho de Ararê, da nação goitacá, forte na guerra, te oferece o seu arco, tu és amigo."
O índio terminou aqui a sua narração.
Enquanto falava, um assomo do orgulho selvagem da força e da
coragem lhe brilhava nos olhos negros, e dava certa nobreza ao seu gesto.
Embora ignorante, filho das florestas, era um rei, tinha a realeza da força.
Apenas concluiu , a altivez do guerreiro desapareceu, ficou
tímido e modesto, já não era mais do que um bárbaro em face de criaturas
civilizadas, cuja superioridade de educação o seu instinto reconhecia.
D. Antônio o ouvia sorrindo-se do seu estilo ora figurado,
ora tão singelo como as primeiras frases que balbucia a criança aos peitos
maternos. [...]
[...]
- Se a senhora manda, disse enfim, Peri fica.
Cecília, apenas seu pai lhe traduziu a resposta do índio,
riu-se daquela cega obediência; mas era mulher; um átomo de vaidade dormia no
fundo do seu coração de moça.
Ver aquela alma selvagem, livre como as aves que planavam no
ar, ou como os rios que corriam na várzea; aquela natureza forte e vigorosa que
fazia prodígios de força e coragem; aquela vontade indomável como a torrente
que se precipita do alto da serra; prostrar-se aos seus pés submissa, vencida,
escrava!
[...]
- Peri!... exclamou Álvaro.
- Não te zangues, disse o índio com doçura; Peri te ama,
porque tu fazes a senhora sorrir. A cana quando está à beira d'água, fica verde
e alegre; quando o vento passa, as folhas dizem Ce-ci. Tu és o rio; Peri é o
vento que passa docemente para não abafar o murmúrio da corrente; é o vento que
curva as folhas até tocarem n'água.
Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este
selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a
delicadeza de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo
atrito da sociedade?
A cena que se desenrolava a seus olhos respondeu-lhe; a
natureza brasileira, tão rica e brilhante, era a imagem que reproduzia aquele
espírito virgem, como o espelho das águas reflete o azul do céu.
[...]
Não é isso a poesia? O homem que nasceu, embalou-se e
cresceu nesse berço perfumado; no meio de cenas tão diversas, entre o eterno
contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno,
não é um poeta?
Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da
natureza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens que tem
diante dos olhos a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma.
[...]
Fitando então no seu amigo os lindos olhos azuis disse com o
tom grave e lento que revela um pensamento profundamente refletido e uma
resolução inabalável:
- Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade dos
brancos; sua irmã fica com ele no deserto, no meio das florestas.
Era essa a ideia que ele há pouco acariciava no seu
espírito, e para a qual tinha invocado a graça divina.
[...]
Mas qual era o laço que a prendia ao mundo civilizado? Não
era ela quase uma filha desses campos, criada com o seu ar puro e livre, com as
suas águas cristalinas?
[...]
Peri tinha abandonado tudo por ela; seu passado, seu
presente, seu futuro, sua ambição, sua vida, sua religião mesmo; tudo era ela,
e unicamente ela; não havia pois que hesitar.
Depois Cecília tinha ainda um pensamento que lhe sorria:
queria abrir ao seu amigo o céu que ela entrevia na sua fé cristã; queria
dar-lhe um lugar perto dela na mansão dos justos, aos pés do trono celeste do
Criador.
ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: FTD,
1999. p. 147, 158, 176, 177, 421-423.
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