Atrás da faixa litorânea do
território fenício, a Síria, encruzilhada de rotas, é também uma encruzilhada
de povos. Muitos aí se instalaram e dominaram alternadamente, deixando no local
elementos étnicos que se fundiram pouco a pouco num todo mesclado, deixando
também vestígios arqueológicos, que os eruditos modernos se esforçam por
classificar. [...]
A vida política. Também eram semitas, saídos não se sabe de que
região do deserto sírio-árabe. Nômades organizados em tribos, tinham vagueado
até a Alta Mesopotâmia, em Harrã, onde os encontramos, de início, muito densos
e estáveis [...]. Em seguida, a partir do século XIV a.C., espalharam-se pela
Síria, onde formaram grupos sedentários. Não expulsaram e jamais fizeram
desaparecer inteiramente as antigas populações. Jamais criaram um Estado único
mas, ao contrário, uma pluralidade de reinos, por vezes em guerra uns contra os
outros. O mais importante foi, segundo parece, o do grande oásis situado ao pé
do Antilíbano, Damasco, o reino dos Benhadads, equivalente hebraico do aramaico
Bar-hadad, isto é, “filho de Haddad”, e de Hazael, isto é, “El observa”. [...]
O apogeu dos arameus verifica-se entre os séculos XI e X a.C.: barravam então,
aos assírios, as rotas do Noroeste e do Ocidente. Mas, a partir do século X, os
reis assírios empenharam-se em lutas contra os arameus, que tiveram de
enfrentar ao mesmo tempo os hebreus. No fim do século VIII findara a sua
independência para sempre, depois dessa data, os arameus se tornaram súditos de
Estados estrangeiros.
Estela de funeral de Si' Gabbor, sacerdote do Deus da lua. Basalto,
início do século VII a.C., encontrado em Neirab (Síria). Tem uma inscrição em
aramaico.
Cada um de seus reinos possuía
sua cidade-capital, seu rei, sua dinastia e também seus usurpadores. A um ou a
outro, os assírios impuseram um tributo, uma homenagem, tentando transformar em
semivassalo e em semifuncionário um pequeno rei que aproveitava a primeira
oportunidade para declarar-se independente. [...]
Estela funerária de basalto com uma inscrição aramaica, ca.
século VII a.C., Neirab (Síria)
O papel comercial. [...] A posição geográfica da Alta Mesopotâmia e
da Síria, destinadas ao tráfico entre a costa fenícia e a Ásia Menor, de um
lado, e as regiões do Eufrates inferior e do Tigre, de outro, permitiu-lhes
desenvolver intensa atividade como intermediários. Foram eles, em terra, numa
parte do Oriente Próximo, o que os fenícios foram no mar. Pouco a pouco, a agricultura
e a indústria síria, aperfeiçoando suas técnicas, adquiriram grande renome e
contribuíram para a fortuna de Damasco. [...] o deslocamento dos arameus antes
de sua fixação como sedentários, as deportações dos reis assírios, a emigração
voluntária de seus comerciantes nos vastos impérios que lhes haviam imposto o
seu domínio, todas essas causas conduziram a disseminação em numerosas cidades,
por vezes bem distantes, de grupos entregues aos negócios, grandes ou pequenos.
Aumentando incessantemente, essa ubiqüidade lhes foi proveitosa, mesmo sob o
domínio grego e, no tempo do Império Romano, quase por toda parte no mundo
antigo, os comerciantes por excelência.
O aramaico, língua do Oriente. O resultado mais imediato disso foi
a expansão de sua língua, cujos múltiplos dialetos se difundiram num aramaico
comum. Em vez de escrever em caracteres cuneiformes, adaptaram ao seu idioma um
alfabeto derivado do fenício. A comodidade conseqüente desse arranjo e sua
dispersão levaram os reis assírios a contratar, para seus scriptoria, escribas arameus que escreviam em papiros. Avançando
ainda mais, os Aquemênidas adotaram o aramaico como idioma administrativo de
seu império. A atividade comercial dos arameus realizou o resto, e sua língua
ganhou à custa de muitas outras. Seus progressos explicam a morte dos velhos
idiomas mesopotâmicos. O uso do hebraico perdeu-se, mesmo na Palestina: a Bíblia ainda conserva passagens em
aramaico [...]; Jesus e seus discípulos não pregaram em hebraico, mas em
aramaico. O siríaco, que foi durante muito tempo o idioma dos cristãos da Síria
e da Mesopotâmia, derivava do aramaico. Apenas a conquista árabe, no século VII
d.C., deteve sua difusão, provocando o seu posterior desaparecimento. Mas,
então, o aramaico já desempenhava enorme papel em todo o Oriente Próximo,
exceto na Ásia Menor e no Egito: papel comercial, intelectual e mais ainda –
como instrumento de unificação -, papel moral e político.
A religião. No tocante a essa época antiga, a arte dos arameus é negligenciável. E não fosse o futuro que alguns de seus cultos desfrutarão no Império Romano, a religião também não ofereceria maior interesse.
Baal. Acrópole de Ugarit.
A religião. No tocante a essa época antiga, a arte dos arameus é negligenciável. E não fosse o futuro que alguns de seus cultos desfrutarão no Império Romano, a religião também não ofereceria maior interesse.
Tratava-se, de fato, de uma
religião sem originalidade, muito misturada, com um fundo sobretudo cananeu,
mesclado de influências mitânicas, hititas e fenícias: tais influências
estrangeiras eram tanto mais facilmente assimiláveis, quanto os cultos por eles
refletidos tiveram, por sua vez, origem em cultos cananeus. Assim, El é
mencionado em diversos pontos, principalmente, o deus da tempestade, Hadad – em
Damasco, Rammon, isto é, “o tonante” – era reconhecido quase sempre sob o nome
de Baal; da mesma forma, é em Astarte que encontramos o protótipo da maioria
das divindades femininas. Os deuses mesopotâmicos, que haviam penetrado em
grande número, confundiam-se frequentemente com deuses cananeus; entretanto, o
Baal de Harrã permaneceu firmemente o deus-lua Sin que, provindo de Ur, na
Caldéia, se instalara nessa cidade desde a mais alta Antiguidade.
A Síria, em matéria religiosa,
também foi uma terra de confluência. Mais tarde, por volta do início da era
cristã, havendo já recebido bastante de outras religiões, transformou ou,
melhor, fundiu muito do que recebera, sobretudo por sincretismo com a teologia
solar. Além disso, exportou muitos elementos religiosos por intermédio de seus
comerciantes, presentes em toda parte, dos soldados que forneceu a Roma e
daqueles que, nascidos em outras regiões, passaram tempos em seu território. A Dea syria Atargátis, os Baals de Doliché,
Heliópolis e Emesa, partiram de solo sírio para ganhar a Europa: Atargátis já
se firmara amplamente em Delos no início do século I a.C.
Nesse tempo em que Roma dominava
o mundo, ninguém mais se preocupava, e desde há muito, com os reis ou com a
civilização da Assíria. Jamais, no entanto, a ação efetiva dos arameus se
exerceu sobre tão amplo domínio. E, sem dúvida alguma, essa influência se
originara da perda de sua independência política, quando Sargão II reprimira as
últimas rebeliões de Hamat e Damasco; a História oferece mais de um exemplo
desse aparente paradoxo.
AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine.
O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no
Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 66-70. (História
Geral das Civilizações, v. 2)
NOTA: O texto "Os arameus" não representa, necessariamente, o
pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a
construção do conhecimento histórico.
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