"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 27 de maio de 2014

Os arameus

Atrás da faixa litorânea do território fenício, a Síria, encruzilhada de rotas, é também uma encruzilhada de povos. Muitos aí se instalaram e dominaram alternadamente, deixando no local elementos étnicos que se fundiram pouco a pouco num todo mesclado, deixando também vestígios arqueológicos, que os eruditos modernos se esforçam por classificar. [...]


Estela de funeral de Si' Gabbor, sacerdote do Deus da lua. Basalto, início do século VII a.C., encontrado em Neirab (Síria). Tem uma inscrição em aramaico.

A vida política. Também eram semitas, saídos não se sabe de que região do deserto sírio-árabe. Nômades organizados em tribos, tinham vagueado até a Alta Mesopotâmia, em Harrã, onde os encontramos, de início, muito densos e estáveis [...]. Em seguida, a partir do século XIV a.C., espalharam-se pela Síria, onde formaram grupos sedentários. Não expulsaram e jamais fizeram desaparecer inteiramente as antigas populações. Jamais criaram um Estado único mas, ao contrário, uma pluralidade de reinos, por vezes em guerra uns contra os outros. O mais importante foi, segundo parece, o do grande oásis situado ao pé do Antilíbano, Damasco, o reino dos Benhadads, equivalente hebraico do aramaico Bar-hadad, isto é, “filho de Haddad”, e de Hazael, isto é, “El observa”. [...] O apogeu dos arameus verifica-se entre os séculos XI e X a.C.: barravam então, aos assírios, as rotas do Noroeste e do Ocidente. Mas, a partir do século X, os reis assírios empenharam-se em lutas contra os arameus, que tiveram de enfrentar ao mesmo tempo os hebreus. No fim do século VIII findara a sua independência para sempre, depois dessa data, os arameus se tornaram súditos de Estados estrangeiros.

Cada um de seus reinos possuía sua cidade-capital, seu rei, sua dinastia e também seus usurpadores. A um ou a outro, os assírios impuseram um tributo, uma homenagem, tentando transformar em semivassalo e em semifuncionário um pequeno rei que aproveitava a primeira oportunidade para declarar-se independente. [...]


Estela funerária de basalto com uma inscrição aramaica, ca. século VII a.C., Neirab (Síria)

O papel comercial. [...] A posição geográfica da Alta Mesopotâmia e da Síria, destinadas ao tráfico entre a costa fenícia e a Ásia Menor, de um lado, e as regiões do Eufrates inferior e do Tigre, de outro, permitiu-lhes desenvolver intensa atividade como intermediários. Foram eles, em terra, numa parte do Oriente Próximo, o que os fenícios foram no mar. Pouco a pouco, a agricultura e a indústria síria, aperfeiçoando suas técnicas, adquiriram grande renome e contribuíram para a fortuna de Damasco. [...] o deslocamento dos arameus antes de sua fixação como sedentários, as deportações dos reis assírios, a emigração voluntária de seus comerciantes nos vastos impérios que lhes haviam imposto o seu domínio, todas essas causas conduziram a disseminação em numerosas cidades, por vezes bem distantes, de grupos entregues aos negócios, grandes ou pequenos. Aumentando incessantemente, essa ubiqüidade lhes foi proveitosa, mesmo sob o domínio grego e, no tempo do Império Romano, quase por toda parte no mundo antigo, os comerciantes por excelência.

O aramaico, língua do Oriente. O resultado mais imediato disso foi a expansão de sua língua, cujos múltiplos dialetos se difundiram num aramaico comum. Em vez de escrever em caracteres cuneiformes, adaptaram ao seu idioma um alfabeto derivado do fenício. A comodidade conseqüente desse arranjo e sua dispersão levaram os reis assírios a contratar, para seus scriptoria, escribas arameus que escreviam em papiros. Avançando ainda mais, os Aquemênidas adotaram o aramaico como idioma administrativo de seu império. A atividade comercial dos arameus realizou o resto, e sua língua ganhou à custa de muitas outras. Seus progressos explicam a morte dos velhos idiomas mesopotâmicos. O uso do hebraico perdeu-se, mesmo na Palestina: a Bíblia ainda conserva passagens em aramaico [...]; Jesus e seus discípulos não pregaram em hebraico, mas em aramaico. O siríaco, que foi durante muito tempo o idioma dos cristãos da Síria e da Mesopotâmia, derivava do aramaico. Apenas a conquista árabe, no século VII d.C., deteve sua difusão, provocando o seu posterior desaparecimento. Mas, então, o aramaico já desempenhava enorme papel em todo o Oriente Próximo, exceto na Ásia Menor e no Egito: papel comercial, intelectual e mais ainda – como instrumento de unificação -, papel moral e político. 


Baal. Acrópole de Ugarit. 

A religião. No tocante a essa época antiga, a arte dos arameus é negligenciável. E não fosse o futuro que alguns de seus cultos desfrutarão no Império Romano, a religião também não ofereceria maior interesse.

Tratava-se, de fato, de uma religião sem originalidade, muito misturada, com um fundo sobretudo cananeu, mesclado de influências mitânicas, hititas e fenícias: tais influências estrangeiras eram tanto mais facilmente assimiláveis, quanto os cultos por eles refletidos tiveram, por sua vez, origem em cultos cananeus. Assim, El é mencionado em diversos pontos, principalmente, o deus da tempestade, Hadad – em Damasco, Rammon, isto é, “o tonante” – era reconhecido quase sempre sob o nome de Baal; da mesma forma, é em Astarte que encontramos o protótipo da maioria das divindades femininas. Os deuses mesopotâmicos, que haviam penetrado em grande número, confundiam-se frequentemente com deuses cananeus; entretanto, o Baal de Harrã permaneceu firmemente o deus-lua Sin que, provindo de Ur, na Caldéia, se instalara nessa cidade desde a mais alta Antiguidade.

A Síria, em matéria religiosa, também foi uma terra de confluência. Mais tarde, por volta do início da era cristã, havendo já recebido bastante de outras religiões, transformou ou, melhor, fundiu muito do que recebera, sobretudo por sincretismo com a teologia solar. Além disso, exportou muitos elementos religiosos por intermédio de seus comerciantes, presentes em toda parte, dos soldados que forneceu a Roma e daqueles que, nascidos em outras regiões, passaram tempos em seu território. A Dea syria Atargátis, os Baals de Doliché, Heliópolis e Emesa, partiram de solo sírio para ganhar a Europa: Atargátis já se firmara amplamente em Delos no início do século I a.C.

Nesse tempo em que Roma dominava o mundo, ninguém mais se preocupava, e desde há muito, com os reis ou com a civilização da Assíria. Jamais, no entanto, a ação efetiva dos arameus se exerceu sobre tão amplo domínio. E, sem dúvida alguma, essa influência se originara da perda de sua independência política, quando Sargão II reprimira as últimas rebeliões de Hamat e Damasco; a História oferece mais de um exemplo desse aparente paradoxo.


AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 66-70. (História Geral das Civilizações, v. 2)


NOTA: O texto "Os arameus" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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