"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 21 de maio de 2014

A Guerra do Ópio

Desde o século XVIII os mercadores ocidentais dedicavam-se ao rendoso comércio de ópio com a China. O consumo dessa droga tornara-se tão generalizado no país, que ela vinha sendo utilizada como moeda no pagamento das exportações chinesas. Se tal substituição constituía uma excelente forma de favorecer a balança comercial dos países ocidentais, seus efeitos sobre a população chinesa eram, ao contrário, extremamente desastrosos. O uso do ópio afetava sobretudo as camadas mais pobres da população, sujeitas a um violento processo de desgaste moral e de debilitação orgânica. Em 1800, um edito imperial proibia a entrada de ópio no país, mas essa medida não impediu que os navios ocidentais continuassem a introduzir, clandestinamente, grandes quantidades da droga na China. A parcela mais significativa desse tráfico era realizada pela Inglaterra, por meio da Companhia das Índias, proprietária de extensas plantações de ópio na Índia.

Século XVIII (Royal Irish). Regimento de infantaria no assalto dos fortes de Amoy, 26 de agosto de 1841. Michael Angelo Hayes (artista) e James Henry Lynch (litografia).

Em 1839, o governo de Pequim enviou o emissário imperial Lin Tse-hsu a Cantão com a missão de pôr fim ao nefasto contrabando de ópio. Apoiado pelas tropas locais, esse funcionário confiscou o ópio que os comerciantes ocidentais transportavam em seus navios, apreendendo e queimando mais de 20.000 caixas de droga. Refugiando-se em Macau e, depois, em Hong-Kong, os comerciantes ocidentais protestaram energicamente contra a ação do governo chinês e anunciaram sua intenção de não retornar a Cantão enquanto o governo britânico não tomasse medidas que assegurassem tanto a sua proteção pessoal como a de seus bens. A Inglaterra não poderia desejar melhor oportunidade para concretizar tão almejada invasão da China; e, usando como pretexto a necessidade de garantir os comerciantes britânicos, desencadeou a chamada “guerra do ópio”.


Chineses fumando ópio. Arnold Wright

Em 1840, tropas inglesas, comandadas pelo coronel Henry Pottinger, desembarcaram na China e venceram facilmente a fraca resistência oferecida pelo seu exército, que não dispunha de armas modernas. Depois de tomarem Shangai, as forças invasoras prosseguiram sem maiores problemas até Nanquim, onde, em 29 de agosto de 1842, forçaram o governo imperial a assinar um tratado com a Inglaterra. Por esse acordo estabelecia-se a abertura de mais quatro portos chineses ao comércio internacional – Shangai, Amoi, Fuchow e Ning-po – além do de Cantão. Nesses portos, os ingleses poderiam instalar suas residências e representações consulares, tendo permissão também para negociar diretamente com os comerciantes chineses, o que abolia o monopólio comercial da Co Hong. Além disso, a Inglaterra adquiriu a ilha de Hong-Kong, sobre a qual passou a ter plena soberania.

Outros acordos, complementares ao tratado de Nanquim, impuseram aos chineses a criação de tribunais consulares nos Portos do Tratado (denominação dada aos novos postos que haviam sido abertos ao comércio com a Inglaterra), com competência para julgar, segundo as leis inglesas, todos os cidadãos britânicos acusados de crimes cometidos em território chinês. Reconhecia-se, assim, de fato, a extraterritorialidade dos centros comerciais ingleses na China, embora tal cláusula não estivesse contida explicitamente nos contratos.

Seguindo o caminho aberto pela Inglaterra, penetraram na China outras potências ocidentais, uma vez que o governo britânico não manifestara a intenção de garantir para si o monopólio do Celeste Império. Nesse sentido, o Lorde Robert Salisbury – político conservador inglês que, durante a segunda metade do século XIX, ocupou por várias vezes os cargos de ministro das Relações Exteriores e de primeiro-ministro – expressou com clareza a posição britânica em relação ao Extremo Oriente: “Na Ásia há lugar para todos”. Assim, não houve qualquer problema internacional quando, em 1844, emissários franceses e norte-americanos obtiveram do governo chinês tratados semelhantes ao de Nanquim.

O emissário francês obteve também do imperador um edito de tolerância em favor dos católicos, que dois anos depois foi estendido aos protestantes. Por esses tratados, os missionários ficavam proibidos de sair dos limites das cinco cidades portuárias abertas ao comércio com o Ocidente. Mas, aproveitando-se de sua condição de estrangeiros, que os punha a salvo da jurisdição chinesa, os missionários penetraram no interior do país. E, quando as autoridades chinesas os aprisionavam, eram conduzidos à mais próxima legação diplomática de um país ocidental, onde nunca sofriam qualquer punição porque não podiam ser considerados criminosos pelas leis de seus países. Dessa forma, os religiosos ficavam livres para retomar suas atividades no interior do país.

Quebrou-se assim o secular isolamento do Império Chinês que, incapaz de enfrentar a superioridade militar dos países ocidentais e de não aceitar suas imposições, teve de ceder até mesmo ante os que não recorreram à força. Tais acontecimentos refletiram-se em alguns setores do governo chinês, que passaram a propor, entre outras coisas, a assimilação da técnica militar das potências ocidentais, a fim de poder enfrentá-las em pé de igualdade, argumentando que a força era a única linguagem compreendida pelos europeus. Os defensores dessa teoria, que estavam em franca minoria nos meios governamentais, foram derrotados pelo conservadorismo dos membros da dinastia Manchu e dos mandarins. Presos à velha tradição de não manter contato com estrangeiros, esses elementos conservadores pretendiam controlar a penetração dos ocidentais fazendo-lhes algumas concessões e, ao mesmo tempo, manipulando-os por meio da mentira ou da astúcia, conforme a situação o exigisse. Tal estratégia, no entanto, revelou-se demasiadamente ingênua ante a firme determinação das potências ocidentais no sentido de intensificar a exploração do comércio com a China, sobretudo considerando-se que esta se apoiava no poder das armas.


HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 146-148. Volume V.

NOTA: O texto "A Guerra do Ópio" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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