"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 29 de maio de 2014

A romanização do Ocidente

A obra da civilização de Roma no Ocidente foi tão profunda que marcou toda a história da Europa.

Estendeu-se através da Gália, do Mediterrâneo até o Reno, e às costas do Atlântico e do mar do Norte. No sul, a mistura dos gregos, celtas e romanizados produziu a civilização provençal. Marselha, com o seu porto e a sua escola grega, foi o grande centro econômico e intelectual da Gália. Na confluência do Ródano e do Sona, Lião, promovida à condição de capital das Gálias, tornou-se grande cidade de negócios, freqüentada pelos orientais. Na Germânia, os quartéis-generais dos exércitos, Mogúncia e Colônia, figuraram entre as principais cidades do Ocidente. No Atlântico, Bordéus assumiu uma importância real pelo seu comércio com a ilha da Bretanha. Mais ao norte, o porto céltico de Bolonha tornou-se base militar. Em toda a parte, cidades secundárias apareceram: locais de pernoite de tropas, como Lutécia (e futura Paris), centros locais, cidades agrícolas ou mercantis.

Nas cidades, misturavam-se elementos celtas, helenizados e romanos. Formava-se uma burguesia. O latim era a língua do exército, da administração, do comércio e do ensino. Escolas preparavam os celtas para as carreiras da alta administração. [...] Sírios e orientais introduziram nas cidades o comércio do dinheiro. Nos campos se instalaram luxuosas vivendas. O uso do vidro de vidraças, tomado da Síria, generalizou-se. Implantou-se na Gália a fabricação do vidro.

A paz substituiu as rivalidades locais. O druidismo, perseguido por Roma, desapareceu. Implantou-se o regime do governo da cidade. Mas, de um modo geral, prevaleceu o sistema aristocrático gaulês. As cidades foram governadas por cúrias, cujos membros se cooptavam. Reuniam-se regularmente as assembléias provinciais e, cada ano, todas as províncias das Gálias enviavam os seus delegados a Lião, à assembléia das Gálias.

Progressivamente, a sociedade evoluiu. A propriedade privada se estendia cada vez mais aos bens das aldeias; a antiga nobreza política tornou-se uma classe de proprietários. Os chefes locais transformaram-se em magistrados eleitos.

Semelhantemente, na Espanha, a paz imperial trouxe grande prosperidade. Colônias romanas e comerciantes orientais ali se instalaram. O tráfico de portos, alimentados pela exportação das minas e pelo comércio com o Oriente, fundou ou desenvolveu cidades, que foram outros tantos centros econômicos e intelectuais, onde gregos, lígures, iberos e romanos se misturaram. Desde o 1º século, a Espanha foi um dos centros principais da cultura latina. Como na Gália, o latim aí se tornou a língua da intelligentsia, dos negócios e da administração. Mas, para permitir à Espanha conservar a tradição da cultura que ela adquirira antes da conquista romana, Vespasiano autorizou o emprego oficial das línguas locais, assim como concedeu em bloco, à Espanha, a cidadania romana.

Da Gália, a dominação romana passara, em 43 d.C., para a grande ilha da Bretanha, cujas minas de estanho eram um complemento econômico indispensável da Gália e da Espanha. Roma construiu na Inglaterra uma dupla rede de estradas, que se irradiava de Londres, famoso centro de tráfico desde o 1º século. Nas costas se instalaram portos e postos militares. Implantaram-se colônias romanas, dando origem a cidades. O desenvolvimento da agricultura fez surgirem as vivendas dos grandes proprietários, ao mesmo tempo que disseminava a pequena propriedade. As importações vindas da Gália introduziram no país costumes mais requintados. A romanização foi essencialmente obra de comerciantes, legionários e marinheiros da frota romana da Mancha. Os celtas da Hibérnia (Irlanda) e da Caledônia (Escócia), aos quais se estendeu a conquista, permaneceram impenetráveis à influência romana.

Da mesma forma, a romanização das províncias danubianas foi muito menos profunda que a do Ocidente. O movimento ali foi mantido principalmente pelas guarnições romanas do Danúbio. Uma delas deu origem a Viena. Na Mésia inferior, Roma encontrou, ao longo do mar Negro, a antiga colonização grega, que suplantou. Sobre os seus antigos vestígios estendeu momentaneamente o poder romano até a Criméia, onde as cidades gregas conservaram a autonomia sob a soberania de Roma.

A Dalmácia e o Epiro voltaram-se, muito naturalmente, para Roma e sofreram, sobretudo no litoral, a influência da Itália, muito próximo.


Apolo Kitharoidos (segurando uma lira). Mármore romano, século II d.C., de estatuária helenística do século II a.C.. Templo de Apolo em Cyrene (Líbia moderna).

A romanização instalou-se igualmente na costa da África, de onde a vida econômica se orientava para Roma. Se a Cirenaica permaneceu sujeita à influência grega e egípcia, o domínio romano se exerceu, em compensação, profundamente, sobre a Tripolitânia e a Tunísia, onde surgiram centros econômicos importantes. Na Numíbia, os acampamentos militares deram origem às cidades [...].

O solo foi sistematicamente explorado por engenheiros romanos, que introduziram na Argélia atual processos de irrigação havidos do Egito. A África tornou-se grande produtora de trigo, abastecendo o império. Mais adiante, na direção do oceano, na Mauritânia (a Argélia ocidental e o Marrocos), Roma só impôs uma ocupação política, que lhe assegurava a soberania sobre os chefes locais, vassalos até o 4º século, e depois apenas confederados.

Adaptando-se com surpreendente flexibilidade ao nível de civilização dos povos incorporados ao império, Roma assimilava-os apoiando-se na burguesia rica e criando em toda a parte uma grande riqueza agrícola e comercial, pela instauração da paz e do comércio livre [...]. Nunca, antes do 19º século, o mundo se cobriu tanto de cidades, todas administradas livremente pela própria população. Em toda a parte, a cultura, disseminada pelas escolas, floresceu. Nivelando o império por cima, Roma espalhou sobre o mundo mediterrâneo as duas grandes conquistas da civilização oriental: a emancipação individual e o sentido do universal.


PIRENNE, Jacques-Henri. Panorama da História Universal. São Paulo: Difel/Editora da Universidade de São Paulo, 1973. p. 114-116.

NOTA: O texto "A romanização do Ocidente" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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