"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 17 de maio de 2014

O homem do século XVI: a afetividade

Cena de aldeia com a pousada (taverna) São MIguel, Pieter Brueghel, o Jovem

Se os tipos físicos são mais diversificados do que hoje, provavelmente o fato é ainda mais verídico no que respeita aos tipos psíquicos. Entre homens tão diferentes e tão estreitamente acantonados, os contatos, salvo vizinhança imediata, só poderiam ser rudimentares e esporádicos. Foram necessários dois séculos para ser estabelecida uma diplomacia europeia. As relações com os mundos exteriores só eram desejadas em caráter de exceção, salvo sob forma de conquista, por causa da confusão de estruturas sociais e políticas e, também, das diferenças de grau no controle de si e da diversificação das formas de afetividade.

Bordel, Joachim Beuckelaer

- O controle de si.  Somente este controle permite a organização e a manutenção de uma ordem social. Entre certos povos, tal controle não é, provavelmente, senão passividade.

Conhece-se melhor o caso dos europeus. O francês do princípio dos Tempos Modernos, bem como seus vizinhos, nos aparecem grosseiros e lascivos, instáveis, emotivos, impulsivos, suscetíveis de sentimentos singularmente violentos. Cupidez e concupiscência são mal refreadas. Assassinatos, crimes passionais, premeditados ou não, violações e raptos são relativamente frequentes em todos os níveis sociais. O clero evita a duras penas tais excessos. Os sentimentos mais elevados, fé religiosa, honra, têm um aspecto visceral e tomam, na ocasião, uma expressão feroz como o testemunham as guerras de religião e os duelos.


Rixa de camponeses, Pieter Brueghel, o Jovem

A crueldade da época nos surpreende. A vista do sangue não provoca repulsa. Atrai, de preferência. Corre-se a assistir as execuções capitais, acompanhadas de grande variedade de suplícios. Encontra-se o mesmo exagero na desesperança e nas penitências livremente consentidas.

Nasce, sem dúvida, na Itália, um tipo de homem superior novo, o cortesão, descrito por Baldassarre Castiglione em um livro célebre desse título (1528), cujo controle de si constitui uma das maiores virtudes, acrescido da distinção das maneiras e da cultura sem afetação. Todavia, tal controle de si é odioso à maioria dos franceses. Contribuiu mais tarde à impopularidade da Corte de Valois.

As paixões individuais mudam-se depressa em paixões coletivas. A peste, o anabatismo, a Guerra dos Camponeses são a oportunidade de "emoções" populares e de matanças generalizadas.

- A sociabilidade. As relações com o próximo correm, amiúde, o risco de serem relações de força. Infeliz do homem só, já o disse a Bíblia; podemos ajuntar: e da mulher sozinha.


Camponeses felizes do lado de fora da taverna "O cisne", Pieter Brueghel, o Jovem

A criança não suscita nenhum interesse por si mesma. Entre os grandes, os nobres, os burgueses, o filho representa o futuro da linhagem. Respeita-se no ancião o benefício da experiência, que ele pode fornecer, e a proximidade do céu na qual talvez se encontre. A caridade, altamente proclamada como uma virtude e um dever, é exercida no interesse do doador e não daquele a quem é dirigida. Os mendigos são tolerados, mas à condição de que não sejam estranhos à localidade.

É que os franceses e seus vizinhos, bastante gregários, constituem células sociais elementares, comunidades rurais, paróquias, muito fortes. Essas comunidades não são entidades, porém sua existência é sentida como a dos organismos vivos, corpos com cabeça e membros. O estrangeiro, o horsain, suscita apenas desconfiança e torna-se facilmente um bode expiatório, sobretudo se não fala a mesma língua, não pratica a mesma religião (judeus), ou exerce, além do mais, uma atividade distinta da do conjunto do corpo (negociante, banqueiro). Então, o ódio que o persegue é endêmico.

Não obstante, solidariedades supralocais são provocadas entre nobres, servidores do soberano. O espírito de corpo, anima determinados ofícios além dos limites da cidade. Os reis da França e da Inglaterra, combateram-se durante muito tempo e, por ser diferente do que veio a tornar-se em consequência, o sentimento nacional existe em seus dois povos.

- A vida e a morte. Estes dois termos não têm o mesmo valor de hoje em dia. A vida é demasiado curta para a maioria dos homens e a duração de todas as idades da vida é diminuída. O homem do século XVI se faz adulto e se desgasta muito cedo. Entre os povos menos resignados, a violência das paixões traduzem uma pressa de viver.

O apego à vida está incessantemente aguilhoado pelo espetáculo cotidiano da morte. Considera-se normal um casal perder a metade de seus filhos numa tenra idade. Somente os pais que perdem um filho único, esperado arrimo de sua velhice, podem, decentemente, afligir-se em público.

No mundo cristão, a morte reveste-se de grande importância, não tanto pelo fato de marcar o termo da vida terrestre, mas porque abre as portas para a vida eterna. Deste além, o homem forma uma representação demasiado concreta e vive-a intensamente quando ela vem ao seu espírito. Esses chamamentos do além suscitam, em todos os níveis, o desejo mais ou menos constante de sacrificar-se. Há, no ocidental do século XVI uma "predominância do afetivo sobre a inteligência" (R. Mandrou). Esta preponderância existe nas relações sociais como, também, nas tentativas de ultrapassagem.

CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 19-21.

NOTA: O texto "O homem do século XVI: a afetividade" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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