"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 13 de maio de 2014

O homem do século XVI: o homem face à natureza

- O homem face ao clima. A geografia física do globo não mudou em suas grandes linhas. 

Se as modificações das margens e dos cursos de água resultam, desde o século XVI, mais da ação dos homens ou de sua deserção que dos fenômenos naturais, as variações do clima quase não podem ser negadas. Uma certa concordância entre diversos índices (crônicas dos contemporâneos, flutuações das geleiras, exame dos anéis de crescimento das árvores) autoriza a reconhecer que, depois de longuíssimo período de temperaturas médias relativamente brandas, a Europa conhece, na segunda metade do século XVI, uma tendência ao resfriamento que se prolonga até o meio do século XIX (“pequena idade glacial”).

O homem é, certamente, mais afetado do que nós pela alternância das estações que ritma o jogo dos elementos naturais, sobre os quais ele tem muito menos poder de ação do que hoje.


Primavera, Pieter Brueghel, o Jovem

Na maior parte dos países temperados, no inverno, a atividade se restringe às horas que escapam às trevas exteriores perigosas, e mesmo interiores paralisantes. No verão, ao contrário, as longas jornadas são consagradas aos trabalhos dos campos, cujo resultado condiciona a subsistência do ano todo, e aos da oficina. Mas igualmente importantes são as meias-estações, a primavera que prepara a colheita e o outono durante o qual se põe em ordem o quadro de frutos silvestres, produtos de caça, lenha para aquecimento, vimes...


A colheita do feno, Pieter Brueghel, o Jovem

Sob outros céus, a alternância das estações toma outras formas: estação seca e estação chuvosa nos países de monções ou mesmo nos países mediterrâneos.

- O quadro de vida. A habitação mudou muito menos do que parece pois, hoje, apenas subsistem da época as casas mais sólidas, sobretudo as construídas de pedra ou de tijolos. Mas estes materiais são, de maneira geral, empregados tardiamente e, no século XVI. Paris continua a ser ainda uma cidade de madeira. Ou melhor, somente o rés-do-chão é de pedra. O incêndio de Londres em 1666 recorda que o emprego da madeira era aí ainda bastante difundido no século XVII. Apenas as igrejas, os conventos, as municipalidades são construídas de materiais duros. Mesmo nas cidades, a cobertura é feita amiúde de sarrafos ou de colmo.

Nas regiões em que é abundante, a madeira constitui a totalidade do edifício (Escandinávia, Rússia). Alhures, o modo de construção mais propagado associa a madeira e o adobe, ou seja, com tabique ou armação de madeira na Europa Ocidental e com adobe e bambu no Extremo Oriente. Uma estrita regulamentação da construção existe em cidade. Subsiste, todavia, certa fluidez no agrupamento da casa. A aldeia Lorena fechada não datará senão do século XVII. No interior dos quarteirões urbanos conservam-se jardins.

Nas cidades, a casa pobre, baixa, compõe-se, em geral, de duas peças, o “cômodo da frente” e o “cômodo traseiro”. A casa burguesa, que permanecera estreita, aumentou verticalmente e aloja inúmeras famílias. A divisão dos níveis sociais se propaga em altura: loja ou oficina no rés-do-chão, residência do mestre no andar de cima e, no alto, quartos dos operários, sótão habitados. No campo, o habitat associa estreitamente homens e animais.


Hora da refeição no campo, Pieter Brueghel, o Jovem

A terra batida que, salvo exceção, constitui o piso das habitações rurais, recua, nas cidades, diante do ladrilhamento. O parquete só timidamente aparece nas casas dos mais ricos e não se difundirá senão no século XVII. Em Paris continua-se ainda a juncar de palha o piso dos aposentos, no inverno, e de ervas recém-cortadas, no verão. A Europa conhece uma inovação com o vidro branco que se propaga nas janelas no século XVI. O taipal maciço é encontrado ainda, especialmente nos campos.

O aquecimento só existe, na verdade, nos países onde o inverno é rigoroso. Na China do Norte, na Rússia, o camponês deita com a família sobre o fogão de tijolo. A Europa do Noroeste conhece a chaminé de certa dimensão, que se torna um elemento decorativo entre os ricos. Em Paris, os pobres se aquecem com o “braseiro” de tijolo utilizado na cozinha. Os países mediterrâneos conhecem apenas a braseira. Na Europa Central e na Oriental, o fogareiro de tijolo, depois de faiança, é posto no cômodo comum. O aquecimento é o privilégio de um único aposento, o que implica, no inverno, uma vida concentrada num pequeno espaço.

O mobiliário, em geral, não é menos rudimentar. O uso da mesa alta distingue a Europa da maioria das demais partes do mundo onde as pessoas se acomodam em redor da mesa baixa, sentadas ou deitadas no chão. Na Europa Ocidental, o luxo do mobiliário consiste em cortinados, cobertas de cama, tapeçarias, almofadas, e, a um nível mais elevado, em móveis como leites com dossel, cofres esculpidos, mais tarde incrustados e, “gabinetes”, ancestrais das secretárias. Mas, a não ser nos castelos de alguma importância, este mobiliário se concentra no cômodo comum e, amiúde, único. A intimidade e a comodidade são quase ignoradas. As privadas são desconhecidas. A iluminação, durante muito tempo, é uma necessidade de Estado ou um luxo. Não obstante, o lustre ou o modesto castiçal se difundem. Esta “vitória sobre a noite” se colocaria na Europa no século XVI (F. Braudel).

O vestuário da grande maioria da humanidade permanece invariável no que concerne ao tecido e à forma empregados, como seja o quimono no Japão ou o poncho no Peru. Também quase não varia entre os países da Europa, homens ou mulheres, antes do século XVIII. A escolha do tecido é fixada segundo os recursos do país, o hábito da vestimenta e a categoria social.

A uniformidade constitui a regra, não apenas nas roupas de trabalho, mas também nos trajes de função. Destarte, na Europa Ocidental e na Central, o traje continua a ser o signo que distingue os letrados: eclesiásticos, agentes da Universidade (nisto compreendidos os médicos) e os juízes. O uso da vestimenta longa impõe um comportamento grave e comedido a homens ainda próximos da natureza.

Entretanto, o traje de corte, que imita bem o traje da cidade, torna-se a presa da moda. Isto a tal ponto, que tudo que se pretende permanente – Igreja – monarquia – se aferra ao uso de vestes anacrônicas cuja forma no conjunto, está fixada, no século XVI. Esta vitória da moda, não é ela o sinal de uma vitória sobre os imperativos do modo de vestir?

- Meios de ação do homem sobre a natureza. Localmente, o homem já possui forte domínio sobre a natureza. Mas o estado de seus conhecimentos biológicos e de sua técnica, a energia motriz de que pode dispor não lhe permitem tentar outra coisa senão uma ordenação prudente e limitada das condições naturais.

O universo fitológico difere sensivelmente do nosso. Salvo em algumas regiões da Ásia, da África e da América, o homem cultiva, no início do século XVI, um espaço bem menor do que o fará no século XIX. Na Europa, um lugar apreciável é deixado ou incult. Pelo menos a metade está ocupada pelas florestas, matas de corte, charnecas, baldios, terras ingratas que o homem, à falta de meios, não pode arrotear nem manter cultivadas, que ele utiliza como terrenos de percurso (inclusive as florestas) ou das quais retira recursos indispensáveis: lenha, forragem, turfa, frutos silvestres, caça etc. Ocorre o mesmo no Extremo Oriente onde os homens mais evoluídos se concentram nas únicas terras que permitem uma cultura permanente e abandonam o restante, colinas e montanhas, a populações primitivas.

O homem entrega-se à clemência do céu. Entretanto, às vezes, ele assume encargos. Na cristandade, cultiva-se a vinha até na Inglaterra e na Noruega para se ter vinho de missa, apesar de não haver colheita todos os anos. Este desafio à natureza, é ele assim tão excepcional?

O homem pouco atua sobre a fertilidade do solo. As terras, em todos os países de cultivo manual, são estrumadas, o mais frequentemente, como na China, pelo adubo humano. Além disso, as lavras são pouco profundas. Os próprios animais as estrumam quando permanecem sobre os restolhos. Para reconstituir a fertilidade do solo, o homem deixa a terra em repouso. Ao incult permanente acrescenta-se um incult temporário, não sempre periódico. Quando aumentam as necessidades alimentares, arroteia-se.

A permuta das espécies já foi considerável entre as diversas partes do Antigo Mundo, mas não se realizou nada comparável em rapidez às transformações produzidas pela descoberta do Novo Mundo. Imaginemos uma Europa onde faltem batatas, milho...

O universo animal é, provavelmente, mais rico do que hoje em espécies domesticadas. Até aí o homem interveio no equilíbrio destas. Entretanto, o urso frequenta, ainda, as montanhas e o lobo, os campos da Europa Ocidental; estão, contudo, em recuo. É menos assombroso ver o homem transportar seus animais domésticos de um a outro continente. Isso levará à América o cavalo, e à Europa o peru e a galinha-d’angola... Alguns animais domésticos seriam irreconhecíveis ao home do século XX. O porco permanece, em geral, pequeno (40 a 60 kg), veloso e armado de defesas. Somente as vacas, encontradas na Índia atualmente, podem dar uma ideia do que eram na Europa.

As civilizações não conservam as paisagens naturais senão nos lugares que negligenciaram. O agricultor do Extremo Oriente, do mesmo modo que o da Europa, faz impiedosa caça à arvore em seu território. Desajuizadamente, ele destrói algumas vezes certas espécies animais e vegetais. Tudo isso exige uma organização coletiva minuciosa e constrangedora para a conservação do terreno, mas raramente empreende uma modificação deliberada da paisagem. Todavia, nas margens do mar do Norte e nos deltas perigosos, a luta defensiva contra o mar tende a tornar-se uma reconquista. É necessário grande arrojo para mobilizar nesse objetivo as magras fontes de energia e as técnicas da época.

As fontes de energia motriz são fontes imediatas, emprestadas ao que se movimenta ou é movido de maneira natural.

O homem, de início, emprega a própria força. A tal respeito, não o faz melhor presentemente. Todas as máquinas elementares estão inventadas. As grandes civilizações do Antigo Mundo conhecem a alavanca, a roda, a polia, o cabrestante, o bolinete, o guindaste, os pedais, que multiplicam as forças humanas, naturalmente débeis.

A força animal é, ainda, mais frequentemente utilizada para transportar do que para puxar ou movimentar as máquinas. Ainda quanto a isso, pelo menos no Antigo Mundo, o homem não o fará muito melhor. O cavalo continua a ser um animal de preço, apanágio dos nobres, dos guerreiros ou dos agricultores de maiores posses das regiões mais fáceis de cultivar.

É graças ao cavalo e ao dromedário que o homem pode vencer a distância, multiplicando por cinco a extensão da etapa cotidiana. Ele, contudo, não venceu o peso. À falta de estradas praticáveis, o transporte permanece aleatório e limitado. Uma carroça atrelada não transporta muito mais que meia tonelada, e as despesas são enormes. Trata-se, portanto, de transportar a uma distância razoável apenas mercadorias leves, caras.

Em terra, o vento não é utilizado senão para mover moinhos. O mesmo ocorre com o motor hidráulico. Nascido das necessidades da moagem, é sempre chamado de moinho. Mas não aciona unicamente mós. Pode-se, pois, considerar que, no século XVI, ele se tornou a principal fonte de energia motriz aplicada na indústria.

A navegação se serve das únicas fontes de energia motora natural (remos, velas). Mas continua a ser um meio de comunicação quase terrestre: fluvial ou costeiro, de resto imbatível, lá onde for possível. A travessia direta dos oceanos e dos mares de alguma amplidão é sempre uma aventura. Ela só começa a ser encarada pelos europeus durante o século XV.

O homem do século XVI não pode considerar os combustíveis como uma fonte de energia. Não obstante, faz uso da madeira e, acessoriamente, na China do Norte e num ponto ou outro da Europa (região de Newcastle, de Liège), do carvão de pedra, não apenas com o fito de aquecer-se, mas para fins industriais: metalurgia, evaporação do sal... É no respeitante às fontes de energia que, provavelmente, a inferioridade das civilizações com relação às nossas é mais nítida.

Assaz paradoxalmente, a técnica é menos atrasada. O domínio da água conhece canais, irrigação, drenagem, bombas de elevação, eclusas. Sem dúvida, muitas ferramentas são feitas de madeira. Entretanto, a ferrumentária do aço, que permite furar, polir (arco de puz, serra, broca) já está sendo mais ou menos empregada. Falta-lhes somente a força. A necessidade de metais preciosos, ou mesmo simplesmente úteis, levou o homem, desde longa data, a ousar a exploração dos recursos do subsolo. Certamente, não é possível comparar a mina de carvão do século XVI com a do século XX. Todavia, tudo aí está: poços, guindastes, galerias, vagonetes, bomba d’água, ventiladores.

A técnica permitiria, pois, ao homem exercer considerável domínio sobre a natureza, se ele dispusesse da energia necessária. Para remediar esta insuficiência, ele se mostra engenhoso em multiplicar as próprias forças. A espera de poder pôr a serviço de sua técnica consideráveis fontes de energia, o homem revela, em suas relações com a natureza, uma paciência infinita. A do europeu do século XVI é, provavelmente, da mesma ordem da do chinês do século XIX. Na verdade, sua técnica e suas fontes de energia motriz não dão ainda ao europeu uma superioridade esmagadora sobre o chinês. Se ele se considera o piloto da humanidade, o é por motivos outros, especialmente espirituais.


CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 11-15.

NOTA: O texto "O homem do século XVI: o homem face à natureza" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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