Cena do filme "As bruxas de Salem", Nicholas Hytner
Ainda que nascida na camada de baixo, da própria sociedade camponesa europeia, como reflexo das tensões internas existentes em suas comunidades, a perseguição à bruxaria foi utilizada, também, pelas altas camadas sociais para controlá-las.
A bruxaria, conhecida desde a Idade Média como uma mescla de religião popular, tradições pagãs e baixa magia, não era considerada perigosa, sendo aceita, parcialmente, pela própria Igreja. A sociedade medieval mostrou-se condescendente com ela até que a crise do século XIV deu início às primeiras perseguições, que se tornariam mais agudas em fins do século XVI.
O que inicialmente se havia considerado como uma simples política de conjuros e malefícios camponeses alterou-se desde que, em 1486, dois dominicanos alemães, Heinrich Krämer e Jakob Sprenger, publicaram o Malleus maleficarum, convertendo a bruxaria em "uma conspiração diabólica para derrubar o cristianismo". Isto foi o início de uma ampla literatura demonológica que floresceu em fins do século XVI e começo do XVII, em pleno período das guerras de religião, e que serviu de base às grandes perseguições destes anos (a maioria dos processos se desenvolveram entre 1580-1630).
O núcleo central da perseguição situou-se na zona fronteira entre França, Alemanha e Suíça, entre católicos e protestantes que se dedicavam a esta tarefa, com igual zelo (Lutero dissera que não se devia consentir que as bruxas vivessem). Houve perseguições na Inglaterra, Escócia e Holanda e, em menor escala, na Escandinávia, Rússia e País Basco. As execuções continuaram, ainda que diminuindo, até o século XVIII: a última conhecida da Europa ocorreu na Suíça, em 1782, quando a servente Anna Göldi foi decapitada, acusada por uma criança endemoniada, e, cinco anos mais tarde, nos Estados Unidos, nos mesmos dias em que se redigia a carta de independência, a multidão ainda matou uma bruxa na Filadélfia.
As mulheres constituíam 80% das vítimas, quase todas humildes e independentes e, em sua maioria, com mais de quarenta anos. Para explicar este fato, devemos começar recordando a misogenia tradicional do cristianismo, que atribui o pecado original à mulher. Na atitude da Igreja, influiu, sem dúvida, o papel que a mulher tinha na sociedade camponesa como transmissora de muitos elementos da cultura popular, manifestada no fato de ser curandeira e parteira, rival da cura do povoado na influência e muito distante do modelo cristão de mulher ideal, submetida ao marido e frequentadora de atos religiosos.
Diferentemente da perseguição à heresia, a das bruxas não parece ter surgido da iniciativa eclesiástica, mas, sim [...] da própria sociedade camponesa numa época de crise econômica e social, ainda que tenha sido aproveitada pelos grupos dirigentes, tanto pela utilidade que representava, em tempos difíceis, de ter um bode expiatório a quem atribuir os males coletivos, quanto pelo reforço da coesão social que produz a luta contra o inimigo externo (uma luta que o Estado acabou utilizando para controlar estas mesmas sociedades).
[...]
A perseguição da bruxaria não é mais que uma das tantas manifestações, no passado e no presente, do perigo que encerra uma mobilização de massas alimentada por preconceitos de qualquer índole - religiosos, raciais, sociais - que acabam sendo utilizados como uma arma de sujeição coletiva. Ao término do século atual, que viu perseguições tão monstruosas como a da bruxaria, porém em escala muito maior - o gulag, o holocausto, o macartismo, as limpezas étnicas - é preciso entender que não basta a condenação do que, para um observador fora do contexto, aparece como irracional, mas é necessário denunciar a irracionalidade que forma parte de nossa própria cultura. Porque, como disse um estudioso da caça às bruxas: "a bruxa pode ser o outro, mas a crença na bruxaria está em nós mesmos". (BRIGGS, Robin. Witches and Neighboors. New York: Viking, 1996. p. 411.)
FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: EDUSC, 2000. p. 355-7.
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