É possível dizer que o século XXI já se iniciou trazendo consigo um conjunto de mudanças vitais para a vida dos homens. Com isso, não quero dizer que estamos diante de uma ‘nova era’, de uma sociedade ‘pós-moderna’ (...) como se o passado fosse (...) algo para ser esquecido diante da força inovadora do presente. As tradições não desaparecem assim tão facilmente, ao contrário, elas se reatualizam, são reinterpretadas. Mas é preciso entender que as transformações atuais são importantes, e entre elas, gostaria de sublinhar a globalização das sociedades e a mundialização da cultura.
(...) O espaço já não pode mais ser pensado como equivalente ao território que nos circunda. Na verdade, até então falávamos de cultura, desde que a vinculássemos a um território determinado. Quando dizemos ‘cultura nacional’, ‘cultura ocidental’, ‘cultura árabe’, partimos de alguns pressupostos. Nação, Ocidente e árabe são qualificativos que amarram os costumes e os modos de vida a fronteiras precisas. Os objetos, as coisas, as referências culturais encontram-se assim enraizados, eles pertencem a um ‘lugar’. Vivemos hoje um momento de ‘desterritorialização’, no qual o espaço perde a sua especificidade física. Evidentemente, isso é possível devido às conquistas tecnológicas. Telefone, fax, televisão, computadores, aviões etc. são tecnologias que encurtam as distâncias, transformando a própria noção de lugar.
Com isso, os objetos perdem suas idiossincrasias. Qual a origem de carro Mazda, quando sabemos que o protótipo foi desenhado na Inglaterra, a montagem, feita nos Estados Unidos e no México, usando componentes eletrônicos inventados em Nova Jersey , mas fabricados no Japão? Ou de um filme como A casa dos espíritos, adaptação de um romance latino-americano, cujo diretor é nórdico, os atores, americanos e espanhóis, e cujas cenas, rodadas em Portugal, nos dão a ilusão de nos encontrarmos no Chile? Este processo de desterritorialização pode ser compreendido quando nos debruçamos sobre o mundo que nos cerca. McDonald’s, Coca-cola, cosméticos Revlon, calças jeans, televisores, CDs são a sua expressão. Nos pontos mais distantes, São Paulo, Paris, Tóquio, nos deparamos com nomes conhecidos: Sony, Ford, Renault, Vokswagen.
Qual o significado disso? Que pertencemos a uma megassociedade na qual os objetos são partilhados em escala planetária. Eles constituem nossa paisagem, nosso meio ambiente. Sua origem importa pouco, eles envolvem ‘todos’, estão ‘em todos os lugares’.
Por isso é possível dizer que nos encontramos diante de uma cultura internacional-popular que já não mais se enraíza no solo nacional. Os personagens, imagens, situações veiculadas pela publicidade, histórias em quadrinhos, cinema, televisão, constituem o substrato de sua memória. Nela se inscrevem as lembranças de todos. As estrelas de cinema, Greta Garbo, Marilyn Monroe, Brigitte Bardot, cultuadas nas cinematecas, nas televisões a cabo, pôsteres e anúncios, fazem parte de um imaginário coletivo mundial. Nesse sentido, pode-se falar de uma memória coletiva cibernética, banco de dados das lembranças desterritorializadas dos homens. Marcas de cigarros, carros velozes, cantores de rock, produtos de supermercados, cenas do passado ou de science-fiction são elementos heteróclitos, estocados para ser utilizados a qualquer momento. (...) Um exemplo: a juventude, T-shirt, rock-and-roll, guitarra elétrica, ídolos da música pop são elementos partilhados planetariamente por uma determinada faixa etária e, é claro, membros de determinadas classes sociais. Da totalidade dos objetos-souvenirs estocados na memória coletiva internacional-popular, os jovens escolhem apenas alguns para se comunicar. Eles podem assim demarcar sua juvenildade em relação aos outros grupos sociais.
Na sociedade global, a distância não é mais um obstáculo para a comunicação ou produção. (...) A diluição das fronteiras não significa que o mundo tenha se tornado melhor (...). No contexto de uma sociedade que se planetariza, novos tipos de comunicação são possíveis, mas também emergem novas formas de poder.
Existem agentes privilegiados que atuam na formação dessa cultura mundializada. A mídia e as transnacionais são essas forças mais visíveis. Pelo fato de serem transnacionais elas possuem uma amplitude que as ‘velhas’ instituições, como a escola, não alcançavam. O jogo do poder se transforma, mas não se reverte para a realização do indivíduo. Este, um ser solitário desde a modernidade do século XIX, a qualquer preço busca se orientar num mundo contraditório, desterritorializado. Sua liberdade é permanentemente posta em causa, não apenas pelo mercado que se globalizou. Os objetos, as mercadorias, a racionalização da sociedade o constrangem mundialmente, em todos os lugares. ORTIZ, Renato. “Fim de territórios cria novos poderes”. Jornal O Estado de S. Paulo, 30/10/1994, caderno Especial Domingo, p. D-13.
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