"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Sexo, gênero e família: a história da mulher

Uma "suffragette" presa na rua por dois policiais. 
Londres, 1914

Na etapa dos caçadores-coletores, a mulher era encarregada [...] da coleta e das primeiras etapas da agricultura, enquanto que o homem cuidava da caça e da pecuária. Com o desenvolvimento da agricultura e com o envolvimento dos homens no trabalho rural, uma das principais atividades da mulher passou a ser a de fiar e tecer, o que alcançou uma importância considerável quando os tecidos converteram-se em produto essencial de comércio.

A situação de domínio dos homens na sociedade, o patriarcado, surgiu com o Estado arcaico e demorou 2500 anos para se definir: em determinar as atitudes de gênero necessárias para sua sustentação. Os Estados arcaicos, disse Gerda Lerner, organizaram-se sobre a base da família patriarcal e aprenderam a submeter outros povos através da prática de submeter suas próprias mulheres, culminando com a institucionalização da escravidão, que começara pela escravização das mulheres dos povos vencidos. [...] A separação entre mulheres respeitáveis e não respeitáveis (a origem da distinção entre "senhoras" e "mulheres") esteve marcada, desde muito cedo, pelo uso do manto para cobrir o corpo das que eram consideradas respeitáveis.

Durante muito tempo, as mulheres tiveram um importante papel na esfera da religião, unido a seu poder de dar vida. Eram sacerdotisas, profetisas, videntes, adivinhadoras, curandeiras... Pouco a pouco, com o estabelecimento de monarquias fortes, as deusas foram sendo relegadas, convertendo-se em simples esposas do deus masculino. O monoteísmo hebreu afastaria, inclusive, estas deusas da fertilidade. O Gênesis atribui a capacidade criadora a um deus masculino, associando a sexualidade feminina que não esteja diretamente relacionada à reprodução dentro da família, às ideias de pecado e de mal.

No mundo clássico, a mulher era subordinada: na Grécia era mantida em uma posição inferior pela convicção de que sua "natureza" submetida aos impulsos físicos a incapacitaria para funções mais responsáveis do que as ligadas ao lar e à procriação. [...] Em Atenas, as mulheres não tinham direitos de cidadania, sendo consideradas, deste ponto de vista, em situação semelhante a dos escravos ou dos estrangeiros. Se na Grécia, praticava-se o abandono de meninas, no mundo romano, o pai estava autorizado a matá-las. 

O cristianismo, que recebera do judaísmo um legado de hostilidade para com as mulheres, não teve dificuldade para assumir os valores da sociedade romana. Só os grupos agnósticos e algumas "heresias" que praticavam o rigor moral valorizavam melhor as mulheres, libertando-as do papel "sujo" que lhes era atribuído na relação sexual.

A sociedade cristã "ortodoxa" retirava a mulher das funções religiosas [...]. A mulher desapareceria da história, agora, convertendo-se em pouco menos que invisível, limitada aos papéis de esposa virtuosa ou de virgem pura por um lado e de prostituta ou de bruxa, por outro.

Consolidava-se, assim, a diferença entre senhoras - damas ou freiras - e as mulheres, que tinham uma função essencial na sociedade agrária, tanto por seu trabalho como por sua condição de transmissora da cultura e que, nas cidades, podiam ser, também, prostitutas, atividade condenada, porém tolerada. [...]

Na Sevilha do século XVI, uma cidade em que muitos maridos haviam ido para as Índias e onde os bordéis situavam-se em casas de propriedade do clero, as mulheres eram muito importantes: havia muitas freiras e muitas prostitutas, as duas funções que o gênero atribui às que não podiam se converter em mães de família: uma, para as ricas, e outra, para as pobres. [...]

[...]

O século XIX seria um século de retrocesso para as senhoras e as mulheres. As primeiras aceitaram adaptar-se à função que lhes era destinada. Para distinguir-se das trabalhadoras deviam aparecer pálidas e delicadas, inúteis para qualquer atividade física, com pés pequenos e cintura estreitíssima, o que conseguiam graças ao espartilho: uma peça equipada com varetas flexíveis e colchetes metálicos [...]. 

As senhoras estavam destinadas a embelezar a vida de seus maridos e a parir filhos. [...]

Nem as mulheres das camadas populares ficaram livres das mudanças nesta época. O papel que haviam desempenhado na agricultura tradicional, tanto por seu trabalho no campo como pelas atividades de elaboração e venda de produtos, viu-se seriamente ameaçado pelas transformações da "revolução agrícola". [...] No trabalho assalariado, a posição das mulheres sempre foi inferior. Tradicionalmente recebiam um terço ou a metade do que os homens, pois entendia-se que o salário da mulher servia para cobrir apenas a sua subsistência enquanto o do homem devia manter, também, a sua família. Na fábrica, a divisão das tarefas proporcionou a recolocação do trabalho feminino numa categoria inferior [...].

[...]

A ocupação principal das mulheres no século XIX era o serviço doméstico [...]. No transcurso do século XIX, preferiram a segurança e a liberdade da fábrica, produzindo-se assim, a crise do serviço doméstico que favoreceu a mecanização das atividades do lar que foram delegadas, agora, à "senhora", com a possível ajuda ocasional de uma mulher que trabalhava por hora.

A vida das mulheres das camadas populares era, originalmente, muito menos regulada pelas convenções do que a das senhoras. [...] A homogeneização da sociedade burguesa exigia, entretanto, eliminar estas exceções e impor uma função subordinada, vinculada ao serviço do marido, à realização das tarefas do lar e à educação dos filhos. [...]

Desfile de "sufraggettes".
Nova Iorque, 6 de maio de 1912

O século XX assistiu a mudanças importantes na condição feminina nos países desenvolvidos. Nos anos posteriores à Primeira Guerra Mundial, as mulheres obtiveram o voto em alguns países e reivindicavam a imagem de uma "nova mulher", liberada do papel que lhes havia sido atribuído e auto-suficiente [...]. Na segunda metade do século, o feminismo ganhou destaque e a mulher ocupou novos espaços sociais, com uma participação maior em todas as profissões e não somente naquelas que eram consideradas como próprias de seu sexo. Além deste reconhecimento público de seus direitos e das medidas de "ação positiva" [...] continuaram, sem dúvida, existindo muitos elementos de desigualdade, visíveis em alguns casos, como nas diferenças salariais por um mesmo trabalho [...].

Sem esquecer que, nos países subdesenvolvidos, permanecem vigorando o infanticídio feminino, a distribuição desigual de alimentos e a assistência de saúde prioritária para com os meninos, fatos que levaram Amartya Sen a calcular que, na população mundial, "faltam cem milhões de mulheres" vítimas de uma discriminação que tem precipitado sua morte.

FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: EDUSC, 2000. p. 203-212.

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