A fotografia mostra a realidade dos afro-americanos moradores do Sul dos Estados Unidos até a década de 1960. Desde o fim da escravidão, gerações de afro-americanos conviveram com o racismo. Terminal de bonde em Oklahoma City, julho de 1939.
Foto: Russel Lee
Nos anos 1890, um novo sistema de subordinação racial nasceu nos Estados Unidos a partir do Sul ex-escravista. Nessa região do país, os negros acabaram perdendo o direito de voto, entre outros direitos conquistados, e foram socialmente segregados. Negros e brancos não podiam mais "se misturar" ou conviver nos espaços públicos. Escolas, serviços públicos e lojas reservavam aos negros instalações separadas, assinaladas por placas bem visíveis afixadas em locais como bebedouros, salas de espera, restaurantes e ônibus, diferenciando "pessoas de cor" e "brancos". Negros também não podiam frequentar diversos parques e praias ou ser atendidos em vários hospitais.
A terrível situação dos negros no Sul, com o aval das autoridades locais e leis específicas, foi reforçada pela violência dos linchamentos. Para manter a "supremacia branca", racistas, frequentemente com a colaboração da polícia e políticos, espancavam, enforcavam ou queimavam os negros suspeitos de crimes, os "atrevidos" ou os que tinham, de algum modo, protestado contra a opressão. Entre 1889 e 1903, na média, dois negros eram linchados por semana nos estados do Sul.
A ideologia da supremacia branca ganhou adeptos fervorosos entre todas as classes sociais do Sul, sendo abraçada, inclusive, pela maioria dos brancos pobres. O intelectual negro W. E. B. DuBois chamou esse fenômeno de "salário psicológico": aos olhos do pobre branco, a superioridade da sua cor compensa sua miséria socioeconômica.
Em 1900, 90% dos 10 milhões de negros nos Estados Unidos moravam nos estados sulistas, em grande parte trabalhando as terras das regiões algodoeiras. A maioria era constituída por arrendatários de latifundiários brancos, pagando "aluguel" das terras em dinheiro ou com parte de sua produção. [...] Formalmente livres, os negros no Sul dos Estados Unidos eram cativos economicamente.
Nos primeiros anos do século XX, a precarização da vida, o racismo e a oferta de trabalho nas indústrias do Norte provocaram o êxodo de negros do Sul dos Estados Unidos para o Norte, onde se uniram aos imigrantes na crescente economia industrial. Além de motivados por salários bem melhores do que os do Sul, os negros sulistas, sem direitos civis básicos onde viviam, mudaram-se atraídos pela possibilidade de, como escreveu W. E. B. DuBois, escapar à condição de casta subordinada, "pelo menos nas suas feições pessoais mais agravantes".
O desejo de conseguir emprego estável, fora do alcance da aberta discriminação racial, tornou-se uma febre" entre os negros sulistas. Depois que metade da população afro-americana saiu de sua cidadezinha, no Mississipi, uma senhora negra lamentou-se:
"Se eu ficar aqui mais [tempo], vou ficar louca. Toda vez que eu volto para casa, eu passo de casa em casa de cada um dos meus amigos, todos estão no Norte e se dando bem. Estou tentando ficar aqui mantendo minha propriedade. Mas não tem gente suficiente aqui que me conheça e que possa me dar um enterro decente".
A maioria dos migrantes negros eram jovens da geração pós-Guerra Civil: insatisfeitos e impacientes, não queriam se acomodar a papéis subservientes. Um migrante da Carolina do Norte afirmou não ser possível "morar [no Sul] e ser tratado como homem".
Entre 1910 e 1920, a população negra de Detroit subiu de 5 mil para 41 mil pessoas; em Cleveland, de 8,4 mil para 35 mil; em Chicago, de 44 mil para 110 mil e, em Nova York, de 91,7 mil para 152 mil.
Entretanto, a vida no Norte também não era fácil para os negros. Havia uma segregação informal, pois ideias racistas estavam bem ancoradas na cultura dominante. Os negros conviviam com diversas formas de violência racial. Suas oportunidades de emprego restringiam-se a serviços domésticos ou trabalhos braçais. Eventualmente, entravam em conflitos com brancos por questões de moradia, trabalho e escola. Porém, em comparação com o racismo sufocante do Sul, as cidades do Norte ofereciam, para muitos negros, a esperança de prosperidade e liberdade social.
Assim, as comunidades negras ampliaram-se em bairros e regiões dessas cidades, tais como a Zona Sul de Chicago e o Harlem, em Nova York. Proliferaram igrejas de fiéis negros e clubes, bares e casas de show frequentadas por negros. Artistas, músicos, poetas e romancistas traduziram a nova experiência de migração e vida urbana negra em diversas expressões culturais.
Intelectualmente, a filosofia de auto-ajuda e de reformas gradativas, defendida pelo proeminente educador negro Booker T. Washington, veio a ser desafiada por propostas políticas mais agudas. Novos intelectuais negros radicados no Norte, como o brilhante sociólogo e historiador W. E. B. DuBois, passaram a criticar Washington por limitar as aspirações de negros às escolas técnicas e agrícolas ao invés de advogar acesso pleno ao nível superior e às profissões liberais. DuBois pregava também o início imediato de uma luta por direitos civis plenos e contra a discriminação racial na educação, nos serviços públicos e no mundo do trabalho. Em 1909, junto com progressistas brancos, ele fundou a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP em inglês), dedicada a esta luta.
Apesar das adversidades, os negros do Sul não foram somente vítimas. A esperança dada pela liberdade acordada após a Guerra Civil persistiu. Muitos criaram famílias estáveis, lutaram para sobreviver e construíram espaços sociais e culturais autônomos, inclusive linguagens musicais populares dinâmicas e criativas como o jazz e o blues.
O blues basicamente misturou ritmos e melodias africanos e europeus. Originou-se nas "canções de trabalho", entoadas na época da escravidão, e desenvolveu-se nas rotinas opressivas de trabalho e vida décadas depois da Abolição. Mais tarde, ao longo do século XX, alimentou-se da experiência do gueto em cidades do Norte.
Esse gênero musical expressou brilhantemente a condição contraditória de ser "livre e cativo ao mesmo tempo". As letras tocaram nas vicissitudes da exploração econômica e da discriminação racial, da solidão, das preocupações, e, sobretudo, dos desejos de escapar aos confinamentos de raça, classe e gênero.
A pobreza, uma constante na vida dos negros, foi um dos temas principais da música blues:
"Sonhei ontem à noite
pensei que o mundo inteiro era meu
acordei hoje de manhã
e não tinha um tostão".
A ferrovia foi, frequentemente, utilizada como metáfora para o escape: "Quando o homem fica com blues, ele pega o trem e sai".
O historiador Bryan Palmer comenta: o blues era "uma articulação de justiça e uma negociação de injustiça" com uma representação poderosa em muitas comunidades negras até as primeiras décadas do século XX. Ante o racismo sistemático e a pobreza, a música traduzia, entre os negros, seus próprios sonhos americanos.
Mais tarde, junto com o jazz, o blues marcaria uma nova presença pública negra na sociedade americana. E, com o tempo, décadas e décadas, passaria não só a fazer parte do patrimônio cultural do país, como seria também uma das principais contribuições culturais dos EUA para o mundo.
KARNAL, Leandro et al. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2010. p. 181-4.
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