"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Visões da História: os "bárbaros"

"A morte do gaulês". O artista é romano e sua escultura nos dá a impressão de um sofrimento muito maior pela derrota do que pelas perfurações de lança no tórax e braço. Que pretendeu o autor esculpindo o "bárbaro" desnudo e com a corda no pescoço?

"[...] Os tempos são tão confusos para nós! Pode-se pensar em escrever sob os golpes do inimigo, quando se vê serem devastados, diante de nós, cidades e campos, quando é preciso fugir através dos perigos do mar e que o próprio exílio não vos convoca ao abrigo de toda a apreensão? Diante de nossos olhos [...] os bárbaros incendeiam Reggio. O estreito braço do mar, que separa a Itália da Sicília, era nossa única proteção."
(Depoimento de Rufino, monge italiano [360-410]. In: COURCELLE, P. História Literária das Grandes Invasões Germânicas. Petrópolis: Vozes, 1955.)

"A morte do gaulês", Artista romano desconhecido

Texto 1 - Os greco-romanos chamavam de bárbaros os povos estranhos a sua cultura e a seu mundo. Dentre eles, os mais próximos eram os germanos, divididos em duas grandes famílias: a gótica (visigodos, ostrogodos, hérulos) e a teutônica (francos, anglos, vândalos, lombardos). Localizados nas fronteiras setentrionais do mundo romano, os germanos mantinham com ele contatos esporádicos. No século IV, com a crise do império, muitas tribos germânicas foram incorporadas ao exército para policiar as fronteiras romanas. No momento de recuo demográfico da população romana e de sua crescente cristianização, diminuiu a procura pela carreira militar, o que propiciou a germanização exército imperial.

A posterior ocupação dos territórios romanos pelos germanos foi, assim, apenas o resultado de uma evolução que os tornara a força viva do império. Portanto, por cerca de dois séculos houve uma penetração pacífica e apenas na primeira metade do século V aconteceram as verdadeiras invasões germânicas. Estas, na realidade, foram precipitadas pela pressão de um povo oriental, os hunos, que levaram os germanos em fuga a entrarem maciçamente em território romano.

Colocavam-se, desta forma, frente a frente duas civilizações que ao longo dos séculos seguintes iriam se fundindo para formar a Europa, a romana e a germânica. Socialmente, os germanos baseavam-se na família patriarcal e monogâmica e, politicamente, na tribo. Seu chefe era um rei eleito pela Assembleia dos Guerreiros, com a qual dividia as principais decisões. Economicamente, os germanos eram agricultores e pastores, com um artesanato pouco desenvolvido (com exceção da metalurgia) e trocas comerciais esporádicas.

A literatura e o direito eram transmitidos de forma oral de geração a geração; as artes principais eram a ourivesaria e os trabalhos  com outros metais. Os povos germanos eram politeístas, com deuses representativos de fenômenos naturais e sociais. Os principais deuses eram Thor, divindade da guerra, e Freya, da fecundidade.

Apesar de representarem apenas 5% da população total do Império Romano, em poucos anos os germanos ocuparam pontos nevrálgicos do Império. A cidade de Roma foi conquistada em 476 e o último imperador deposto. Quebrava-se a unidade de política anterior. Surgiam vários reinos germânicos, ponto de partida dos futuros países europeus. Começava a Idade Média. FRANCO JUNIOR, Hilário; ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Atlas: história geral. São Paulo: Scipione, 1993. 


"A morte do gaulês", Artista romano desconhecido

Texto 2 - Desde a época da unidade entre os helenos o termo “bárbaro” foi usado mais com o sentido de diferenciar os gregos dos demais povos. Tal conceito foi levado aos romanos, que o adotaram, agora, com relação ao seu mundo.

O significado tornou-se mais estranho quando o governo de Roma estendeu a cidadania romana aos homens livres das províncias, onde quer que elas se encontrassem.

Se para os gregos o sentido da palavra “bárbaro” refletia uma condição de inferioridade sob qualquer aspecto – físico, cultural, religioso -, para os romanos era mais de natureza política.

A denominação “bárbaro” atravessou os tempos, de modo que hoje é preciso cuidado para não cometermos o erro de generalização de conceitos sobre povos dos mais diversos estágios culturais.


O egoísmo com que os europeus estudaram o mundo, fazendo tudo girar em torno da Europa, levou muitos historiadores e autores de compêndios de História a apresentar como “bárbaros” apenas os povos da Europa além do Reno e do Danúbio, fronteiras naturais do Império Romano. Lembremos que o colossal Império foi assediado em todo o seu contorno, na Europa, Ásia e África.

Os motivos dessa pressão foram os mais diversificados, inclusive a consciência de uma civilização a preservar.

É um fato constatado em todos os tempos como os povos de menor poderio encaram a nação poderosa. Pode haver ou não opressão mais ou menos intensa, mas sempre há um sentimento de animosidade, produto talvez de uma inveja profunda.

O poderio romano foi fruto de muito esforço; mas os “bárbaros” não procuravam essas origens. Constatavam as diferenças no momento em que viviam e isso era tudo. Aquilo que fazia do romano o inimigo odiado era o que eles desejavam.

Outros sofriam o problema do crescimento demográfico. Hoje é sabido que há uma relação entre crescimento demográfico e crescimento cultural. O desenvolvimento cultural condiciona sempre novas formas de sobrevivência, permitindo o aumento demográfico. As concentrações, que vemos atualmente em certas áreas, não seriam possíveis em outros tempos.

Os povos que viviam da caça e agricultura rudimentar, com o frio do inverno os obrigando às migrações, não podiam assistir ao seu crescimento demográfico sem a procura de soluções ao nível de sua cultura – ocupar terras mais ao sul, onde as condições climáticas são mais favoráveis. Mas essas eram as terras dos romanos.

A diferença de costumes impressiona as mais simples. Os “bárbaros”, que tinham apenas estrutura familiar e algumas noções de convivência e cooperação grupal, não podiam ficar isentos à vida urbana do Império. Sabemos como as cidades exercem atração sobre os jovens da área rural afastada. O brilho da civilização romana foi um ímã atraindo em todas as fronteiras.

A vida rude, onde o vigor físico era grandemente valorizado, encontrava nas legiões romanas um forte atrativo.

O temperamento comercial, comum a todos os povos, via no mundo romano oportunidades inigualáveis. Participar daquele mercado era uma ambição tremenda.

Mas há uma força que acompanha a humanidade em todos os tempos. A ansiedade de progredir é muitas vezes cerceada pela situação de vida no grupo de origem. Desligar-se das tradições limitadoras e procurar construir nova vida em ambiente novo, onde nada do passado o retém, é uma força sempre atuante sobre muitos indivíduos. A grande cidade, onde cada um se perde na multidão, é o melhor lugar para os que desejam essa nova vida. Roma era o sonho acalentado por jovens em toda parte.

Quantos realizaram seus objetivos e quantos foram destruídos nos embates da vida não se pode saber. O fato permanente foi a mesclagem generalizada. Mesclagem física, mas sobretudo cultural. Se os “bárbaros” embruteceram o Império Romano a ponto de precipitar sua fragmentação e decadência, é fato também que a civilização romana, reforçada pelo cristianismo, condicionou o desenvolvimento de áreas que, por si, levariam ainda muito tempo para atingir os padrões culturais que conseguiram. GASMAN, Lydinéa e FONSECA, James B. Vieira da. História Geral 1 – Antiga e Medieval. Rio de Janeiro: MEC/FENAME, 1971.


"A morte do gaulês", Artista romano desconhecido

Texto 3 -  Mas a vinda massiva dos bárbaros para o Império Romano foi apenas o último episódio de antigas relações. Romanos e bárbaros trocavam produtos, faziam empréstimos recíprocos em suas línguas e em seus costumes. Os recém-chegados não eram muito numerosos, ainda que fossem os mais fortes e dominassem as populações há muito sedentárias.

A cultura das populações romanizadas não desapareceu e foi, no geral, adotada pelos imigrantes. O latim permaneceu a língua oficial, a do clérigo cristão e da maior parte da população. Com o tempo, os imigrantes também se identificaram com seus predecessores. Foi uma das sortes da Europa.

A 'pureza étnica' que se evoca atualmente, de forma escandalosa na ex-Iugoslávia - e que, aliás, não existe realmente, pois a mistura é a lei das sociedades humanas -, é, em geral, estéril e limitada  em suas aptidões. Ao contrário, os povos originários de misturas são em geral mais ricos e mais fecundos do ponto de vista da civilização e das instituições. A mescla dos homens é uma fonte de progresso.

Na Gália, por exemplo, a combinação dos dois primeiros povos, os gauleses, que se tornaram os galo-romanos, e os franco-germânicos instalados desde o século V, favoreceu o desenvolvimento da futura França". LE GOFF, Jacques. Uma breve história da Europa. Petrópolis: Vozes, 2008. 

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