"O triunfo da morte", Pieter Bruegel
Mesmo já identificando males de origem para a crise dos séculos XIV e XV, é importante caracterizar os efeitos que causaram a fome, a peste e a guerra na estrutura feudal. [...] estes momentos críticos nos possibilitam perceber as mentalidades e atitudes de uma sociedade em transformação.
* A fome. A fome sempre foi um problema de grandes proporções para o homem medieval [...].
A hagiografia da Idade Média está permeada de casos em que uma aldeia faminta vê como verdadeiro santo aquele que consegue provê-la de alimentos em um momento de penúria. Morrer de fome, portanto, não era incomum para o homem medieval.
É bastante expressiva também a comprovação de que os quatro mitos mais populares da Idade Média (o Graal, Avalon, o Reino de Preste João e o País da Cocanha) tivessem conotações ligadas não só a funções alimentares, mas a temas referentes à abundância e à fartura.
Apesar dos incrementos dos séculos XI-XIII, a fome não desapareceu por completo do Ocidente cristão, continuando a rondar principalmente as regiões mais isoladas dos circuitos de abastecimento. O início do século XIV [...] foi marcado por um ciclo de chuvas torrenciais generalizadas, o que acarretou a perda de colheitas em vários pontos da Europa.
[...]
À escassez agrícola seguiam-se frequentemente convulsão social, agudização de tensões políticas já existentes, mas principalmente a disseminação em larga escala da fome e de inúmeras moléstias ligadas a carências alimentares.
O impacto econômico da Grande Fome foi desastroso, já que os recursos existentes foram canalizados principalmente para a aquisição de alimentos, ocasionando a retração do comércio e do artesanato. [...]
Jeffrey Richards assim sintetizou os efeitos da Grande Fome:
"A fome e doenças graves que se seguiram (depois de 1377) reduziram as pessoas a comerem cães e gatos, folhas e raízes, e, em alguns lugares, ao canibalismo. À medida que o povo foi levado a atitudes desesperadas para obter comida, houve uma onda de crimes. Em seguida, uma desastrosa epizzotia dizimou boa parte do rebanho." (RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. p. 26.)
* A peste. As doenças povoaram o Ocidente medieval em função das próprias condições alimentares e dos limitados recursos médicos. As cidades, mais sobrecarregadas pelo crescimento demográfico, concentravam enfermos e, consequentemente, contribuíam para difundir enfermidades. A tuberculose foi a mais mortífera de todas as doenças endêmicas da Idade Média. Entretanto, foram as doenças de pele - notadamente a lepra - que mais marcariam o imaginário medieval, pelo menos até o século XIV. Os leprosos, párias por excelência do mundo medieval, promoviam uma atitude ambígua da cristandade em relação às doenças - de repulsa e, ao mesmo tempo, de compromisso caridoso. A peste negra, por sua vez, roubaria a cena, transformando-se na doença mais marcante do final da Idade Média.
Vinda da Criméia em um navio genovês, a peste negra varreu a Europa em quatro anos (1347-1350), atingindo uma população vulnerável e uma estrutura econômica em crise. Os incidentes que cercam a contaminação inicial não deixam de ser interessantes:
"Todos os testemunhos concordam em situar a origem da peste na Ásia Central, onde existia em estado endêmico. O grande viajante Ibn Batuta, que visitou a Índia Meridional pouco depois de 1342, aí a assinala. Em 1347, os mongóis, que assediavam o entreposto genovês de Caffa, no Mar Negro, foram eles os próprios contaminados e, por um requinte de crueldade, catapultaram para dentro da cidade vários cadáveres. Um navio, partido de Caffa para a Itália, à passagem por Constantinopla, semeou aí a peste." (WOLFF, Philippe. Outono da Idade Média ou primavera dos novos tempos? Lisboa: Edições 70, 1986. p. 25.)
Sabemos que não só a Europa foi atingida pela epidemia. Enquanto a peste alastrava-se pelo continente europeu [...] também causava estragos em Alexandria, Síria e Palestina, chegando violentamente até a China, em 1351.
[...]
Os locais de maior concentração humana foram os que mais sofreram. As cidades, além de insalubres [...] eram zonas de fácil circulação, o que contribuiu para agravar as possibilidades de propagação do mal. [...]
[...]
* A guerra. Afetadas pela crise, as classes dominantes feudais recorreriam a um expediente clássico dos momentos de maior instabilidade: a guerra. Irromperam conflitos em diversos pontos da Europa (na Península Ibérica, no norte da Europa, entre as cidades italianas), sendo o mais importante de todos a Guerra dos Cem Anos, durante a qual se defrontaram França e Inglaterra entre 1337-1453. [...]
Nas guerras do período, muitas vezes, a existência de vínculos feudais e/ou familiares contribuía para as soluções armadas entre as monarquias nascentes. [...]
A Guerra dos Cem Anos, entretanto, não se tratava de um combate medieval clássico entre senhores em litígio mas sim de um conflito com algumas cores modernas. Entre elas podemos apontar a própria durabilidade, as novas tendências militares, a utilização de bloqueios econômicos, a noção crescente de um sentimento patriótico ligado à sensação de se estar lutando por um reino e não mais por um senhor. Encontramos alguns autores que chegam a referir-se ao episódio como primeira grande guerra nacionalista.
"É evidente que o sentimento 'nacional' dos séculos XIV e XV é muito diferente dos nossos sentimentos nacionais. Ele se forma através de um nome comum, de um príncipe comum, de interesses comuns, de uma língua comum, da consciência de uma origem comum, do orgulho de uma história comum e de uma religião comum." (GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV. São Paulo: Pioneira, USP, 1981. p. 110.)
A centralização política foi acelerada em ambos os países. [...] De forma geral, o saldo para a nobreza foi negativo. A monarquia, fortalecida desde o século XIII através de alianças com a burguesia, e o revigoramento do Direito Romano [...], foram preenchendo o vácuo proporcionado pela aristocracia arruinada ou à beira da ruína. [...]
* Os desdobramentos econômicos e sociais da crise. Os efeitos econômicos da Crise dos Séculos XIV e XV foram extremamente drásticos e abrangentes [...].
A perda de boa parte dos mercados produtores e consumidores fez com que o comércio diminuísse sensivelmente de intensidade. A insegurança provocada pelas guerras atingiu em cheio a possibilidade de deslocamento dos mercadores, contribuindo para a retração comercial.
As relações servis sofreram alterações em praticamente todas as áreas da Europa Ocidental. A tendência geral foi a expressiva renúncia dos senhorios às antigas obrigações camponesas, por pagamentos em dinheiro. [...] Quase todas as aldeias e áreas de cultivo sofreram enormemente com a constante passagem de combatentes. [...] Bois, cavalos, moinhos e plantações eram frequentemente alvos de guerreiros de um exército ou mesmo de bandos armados. Quanto às cidades, estas sempre se encontravam mais guarnecidas, tanto por muralhas quanto pelas milícias burguesas.
Além da destruição, guerra e peste provocavam migrações expressivas e muitas vezes as colheitas de determinadas regiões não chegavam sequer a ser devidamente aproveitadas. [...]
Alguns setores da aristocracia procuravam fugir da crise bloqueando o aumento dos salários através da promulgação de uma legislação especificamente elaborada com este propósito. Por outro lado, os impostos pagos ao reino contribuíram para agravar a situação dos trabalhadores. Foi este o pano de fundo das diversas rebeliões camponesas do século XIV. Dentre elas, podemos destacar a Jacquerie, ocorrida na França em 1358, e a Revolta dos Camponeses, em 1381, na Inglaterra, onde foram difundidos protestos que questionavam da ordem vigente [...]. Mesmo as áreas urbanas foram palco de revoltas parecidas, como o episódio dos Ciompi, que irrompeu em 1378 em Florença.
[...]
O desmoronamento do mundo tradicional foi sentido por toda a sociedade feudal. Além do impacto sobre os trabalhadores, vítimas em potencial da crise, muitas casas nobiliárquicas foram atingidas e desapareceram no decurso da Baixa Idade Média. As rendas senhoriais cada vez menores e as desvalorizações monetárias crescentes contribuíram para a liquidação das pequenas fortunas feudais. [...]
[...]
No decurso da crise, em determinadas regiões, a reação à desastrosa conjuntura passou pelo recrudescimento de tendências excludentes já arraigadas na sociedade medieval, culminando com as perseguições promovidas aos leprosos, judeus, prestamistas e às mulheres solitárias. Em alguns momentos, explosões de violência contra estes marginalizados irromperam na sociedade medieval com o incentivo das próprias autoridades.
O inquisidor Bernardo Gui afirmava:
"Em 1321, foi detectado e desbaratado um plano maligno dos leprosos contra as pessoas saudáveis do reino da França. De fato, conspirando contra a segurança do povo, estas pessoas, insalubres do corpo e insanas da mente, haviam planejado infectar as águas dos rios, fontes e poços em toda a parte, colocando veneno e material infectado nelas, e misturando [na água] pós preparados, de modo que os homens saudáveis que delas bebessem, ou usassem as águas desta forma infectadas, tornar-se-iam leprosos ou morreriam, ou quase morreriam, e assim o número de leprosos aumentaria e o de saudáveis diminuiria. E, o que parece incrível dizer, eles aspiravam a se tornarem senhores de cidades e castelos, e já haviam dividido entre eles os títulos e locais, e dado a si mesmos os mesmos nomes de príncipes e condes ou barões em várias terras, se aquilo que haviam planejado tivesse se concretizado."
AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 42-50.
A morte negra. Miniatura da Bíblia Toggenburg, 1411. Artista desconhecido
Vinda da Criméia em um navio genovês, a peste negra varreu a Europa em quatro anos (1347-1350), atingindo uma população vulnerável e uma estrutura econômica em crise. Os incidentes que cercam a contaminação inicial não deixam de ser interessantes:
"Todos os testemunhos concordam em situar a origem da peste na Ásia Central, onde existia em estado endêmico. O grande viajante Ibn Batuta, que visitou a Índia Meridional pouco depois de 1342, aí a assinala. Em 1347, os mongóis, que assediavam o entreposto genovês de Caffa, no Mar Negro, foram eles os próprios contaminados e, por um requinte de crueldade, catapultaram para dentro da cidade vários cadáveres. Um navio, partido de Caffa para a Itália, à passagem por Constantinopla, semeou aí a peste." (WOLFF, Philippe. Outono da Idade Média ou primavera dos novos tempos? Lisboa: Edições 70, 1986. p. 25.)
Sabemos que não só a Europa foi atingida pela epidemia. Enquanto a peste alastrava-se pelo continente europeu [...] também causava estragos em Alexandria, Síria e Palestina, chegando violentamente até a China, em 1351.
[...]
Os locais de maior concentração humana foram os que mais sofreram. As cidades, além de insalubres [...] eram zonas de fácil circulação, o que contribuiu para agravar as possibilidades de propagação do mal. [...]
[...]
* A guerra. Afetadas pela crise, as classes dominantes feudais recorreriam a um expediente clássico dos momentos de maior instabilidade: a guerra. Irromperam conflitos em diversos pontos da Europa (na Península Ibérica, no norte da Europa, entre as cidades italianas), sendo o mais importante de todos a Guerra dos Cem Anos, durante a qual se defrontaram França e Inglaterra entre 1337-1453. [...]
Nas guerras do período, muitas vezes, a existência de vínculos feudais e/ou familiares contribuía para as soluções armadas entre as monarquias nascentes. [...]
A Guerra dos Cem Anos, entretanto, não se tratava de um combate medieval clássico entre senhores em litígio mas sim de um conflito com algumas cores modernas. Entre elas podemos apontar a própria durabilidade, as novas tendências militares, a utilização de bloqueios econômicos, a noção crescente de um sentimento patriótico ligado à sensação de se estar lutando por um reino e não mais por um senhor. Encontramos alguns autores que chegam a referir-se ao episódio como primeira grande guerra nacionalista.
"É evidente que o sentimento 'nacional' dos séculos XIV e XV é muito diferente dos nossos sentimentos nacionais. Ele se forma através de um nome comum, de um príncipe comum, de interesses comuns, de uma língua comum, da consciência de uma origem comum, do orgulho de uma história comum e de uma religião comum." (GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV. São Paulo: Pioneira, USP, 1981. p. 110.)
A centralização política foi acelerada em ambos os países. [...] De forma geral, o saldo para a nobreza foi negativo. A monarquia, fortalecida desde o século XIII através de alianças com a burguesia, e o revigoramento do Direito Romano [...], foram preenchendo o vácuo proporcionado pela aristocracia arruinada ou à beira da ruína. [...]
* Os desdobramentos econômicos e sociais da crise. Os efeitos econômicos da Crise dos Séculos XIV e XV foram extremamente drásticos e abrangentes [...].
A perda de boa parte dos mercados produtores e consumidores fez com que o comércio diminuísse sensivelmente de intensidade. A insegurança provocada pelas guerras atingiu em cheio a possibilidade de deslocamento dos mercadores, contribuindo para a retração comercial.
As relações servis sofreram alterações em praticamente todas as áreas da Europa Ocidental. A tendência geral foi a expressiva renúncia dos senhorios às antigas obrigações camponesas, por pagamentos em dinheiro. [...] Quase todas as aldeias e áreas de cultivo sofreram enormemente com a constante passagem de combatentes. [...] Bois, cavalos, moinhos e plantações eram frequentemente alvos de guerreiros de um exército ou mesmo de bandos armados. Quanto às cidades, estas sempre se encontravam mais guarnecidas, tanto por muralhas quanto pelas milícias burguesas.
Além da destruição, guerra e peste provocavam migrações expressivas e muitas vezes as colheitas de determinadas regiões não chegavam sequer a ser devidamente aproveitadas. [...]
Alguns setores da aristocracia procuravam fugir da crise bloqueando o aumento dos salários através da promulgação de uma legislação especificamente elaborada com este propósito. Por outro lado, os impostos pagos ao reino contribuíram para agravar a situação dos trabalhadores. Foi este o pano de fundo das diversas rebeliões camponesas do século XIV. Dentre elas, podemos destacar a Jacquerie, ocorrida na França em 1358, e a Revolta dos Camponeses, em 1381, na Inglaterra, onde foram difundidos protestos que questionavam da ordem vigente [...]. Mesmo as áreas urbanas foram palco de revoltas parecidas, como o episódio dos Ciompi, que irrompeu em 1378 em Florença.
[...]
O desmoronamento do mundo tradicional foi sentido por toda a sociedade feudal. Além do impacto sobre os trabalhadores, vítimas em potencial da crise, muitas casas nobiliárquicas foram atingidas e desapareceram no decurso da Baixa Idade Média. As rendas senhoriais cada vez menores e as desvalorizações monetárias crescentes contribuíram para a liquidação das pequenas fortunas feudais. [...]
[...]
No decurso da crise, em determinadas regiões, a reação à desastrosa conjuntura passou pelo recrudescimento de tendências excludentes já arraigadas na sociedade medieval, culminando com as perseguições promovidas aos leprosos, judeus, prestamistas e às mulheres solitárias. Em alguns momentos, explosões de violência contra estes marginalizados irromperam na sociedade medieval com o incentivo das próprias autoridades.
O inquisidor Bernardo Gui afirmava:
"Em 1321, foi detectado e desbaratado um plano maligno dos leprosos contra as pessoas saudáveis do reino da França. De fato, conspirando contra a segurança do povo, estas pessoas, insalubres do corpo e insanas da mente, haviam planejado infectar as águas dos rios, fontes e poços em toda a parte, colocando veneno e material infectado nelas, e misturando [na água] pós preparados, de modo que os homens saudáveis que delas bebessem, ou usassem as águas desta forma infectadas, tornar-se-iam leprosos ou morreriam, ou quase morreriam, e assim o número de leprosos aumentaria e o de saudáveis diminuiria. E, o que parece incrível dizer, eles aspiravam a se tornarem senhores de cidades e castelos, e já haviam dividido entre eles os títulos e locais, e dado a si mesmos os mesmos nomes de príncipes e condes ou barões em várias terras, se aquilo que haviam planejado tivesse se concretizado."
AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 42-50.
Nenhum comentário:
Postar um comentário