No filme clássico de David W. Grifith,
Intolerância (1916), um dos episódios
narrados é A Noite de São Bartolomeu,
ocorrido em 1572 – o grande massacre de huguenotes (calvinistas) pelos católicos
na França. Foi o tempo das “guerras de religião” na França, como em outras
partes da Europa ocidental. A rigor, tais guerras começaram no início do século
XVI, em pleno território germânico – palco da Reforma Luterana – e só
terminaram em 1648, com o fim da Guerra dos Trinta Anos. Isso significa que a
intolerância religiosa foi motivo real de muitos conflitos entre reis e príncipes
europeus nos primeiros séculos da Época Moderna, embora não estivessem ausentes
outras motivações.
O sentimento religioso era mesmo
central na definição das identidades individuais e coletivas nesse período. Mas,
para entender o fenômeno da intolerância nessa época, é preciso destacar que, a
partir do século XVI, os Estados europeus passaram a se definir, em grande
medida, como Estados confessionais, isto é, dotados de uma religião oficial. A
ruptura da cristandade provocada pelas reformas protestantes fez da identidade
religiosa um elemento central para reis e príncipes e, por vezes, um divisor de
águas no jogo de alianças e conflitos do período. Um marco desse processo foi
estabelecido na Paz de Augsburgo (1555), que pôs fim às guerras entre os príncipes
luteranos e o imperador Carlos V, ao estabelecer-se o princípio cujus regio, hujus religio: a religião
do príncipe deveria ser a religião dos súditos.
Longe de apaziguar os ânimos, a
consagração desse princípio estimulou a intolerância e hostilidade contra
minorias religiosas em toda parte. Na Inglaterra anglicana, católicos e
puritanos foram perseguidos; na França dilacerada, católicos e calvinistas
viviam em guerra fratricida; na própria Holanda, tão afamada por sua tolerância
religiosa, o conflito entre gomaristas e arminianos foi dilacerante, os
primeiros defendendo o princípio da predestinação de forma literal; os segundos
advogando alguma importância para as obras terrenas do devoto.
Contudo, em uma perspectiva
comparativa acerca da geografia religiosa na época, pode-se dizer que os Países
Baixos forneceram o exemplo de maior tolerância religiosa, ao menos
oficialmente. Basta dizer que cerca de um terço da população das sete províncias
da República das Províncias Unidas permaneceu católica, ainda que tenham sido
cerceadas as missas e procissões. A província da Holanda, em particular,
tornou-se o principal refúgio de cristãos-novos ibéricos, sobretudo
portugueses, no século XVII. Ali os cristãos-novos apostasiaram do catolicismo,
assumindo-se como “judeus públicos” e construindo uma importante comunidade,
estimulados pelas autoridades holandesas: a Talmud Tora. Vários deles estiveram
no Recife holandês, entre 1636 e 1654, fundando a primeira sinagoga das Américas:
a Kahal Kadosh Zur Israel.
No pólo oposto à Holanda, os países
ibéricos instituíram a temível Inquisição, tribunal de fé especializado em
perseguir os hereges da religião católica, a única permitida nos dois reinos a
partir de fins do século XV. No caso ibérico, porém, a intolerância religiosa
teve pouco a ver com a Reforma Protestante, devendo-se antes à existência de
numerosas comunidades judaicas e muçulmanas ali fixadas desde a Idade Média. Na
Espanha, a Inquisição foi instalada em 1478, pois o número de conversos era já
elevado desde o final do século XIV, e coincidiu com o início da unificação política
dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela. A política de
intolerância foi poderoso instrumento unificador, sendo a Espanha marcada por
enormes diferenças culturais e lingüísticas. Em 1492, a intolerância
avançou com a expulsão dos judeus remanescentes e a conquista de Granada, último
bastão islâmico na península Ibérica. No início do século XVII, também os
mouros foram obrigados à conversão.
Em Portugal, onde havia forte
tradição de tolerância e convívio entre os três monoteísmos, d. Manuel decretou
a conversão forçada de todos os judeus e muçulmanos do reino, em 1496, em
grande parte por influência espanhola. A Inquisição só seria estabelecida, porém,
a partir de 1536, já no reinado de seu sucessor, d. João III.
Nos dois reinos, as principais
vítimas da Inquisição foram os cristãos-novos, descendentes dos judeus, embora
somente uma pequena parcela deles tenha sido executada na fogueira. [...]
Queima de uma bruxa na fogueira.
Willisau, Suíça, em 1447
A intolerância dos Estados
europeus não se restringiu às “grandes religiões”. Os séculos XVI e XVII
testemunharam o apogeu da “caça às bruxas”, sobretudo na França: uma autêntica “cruzada”
contra as religiosidades populares, meio cristãs, meio pagãs – demonizadas pelos
teólogos e juízes. Testemunharam, ainda, perseguições contra os desviantes da
moral cristã em matéria sexual, seja no mundo católico, seja no protestante: as
maiores vítimas, nesse caso, foram os praticantes de relações homoeróticas. Os
chamados sodomitas foram condenados à fogueira em vários países, sobretudo na
Holanda, França e principados germânicos. Nos países ibéricos, em comparação,
foram mais tolerados. Mas não saíram ilesos.
Ronaldo Vainfas. Intolerância.
In: BETING, Graziella. Coleção história
de A a Z: [volume] 3: Idade Moderna. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 51-52.
NOTA: O texto "A intolerância religiosa dos Estados europeus na Época Moderna" não representa, necessariamente, o pensamento deste
blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do
conhecimento histórico.
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