O frenético ritmo de
desenvolvimento do Século de Ouro dos Países Baixos dominava a Amsterdã dos
anos 1600. Comerciantes abastados, artistas e trabalhadores braçais chegavam
diariamente, depois que as províncias do norte se uniram, no fim do século XVI,
em busca de independência. O comércio estava mais próspero que nunca,
impulsionado pela criação da Companhia das Índias Orientais em 1602. Ciência,
tecnologia e arte floresciam. O clima era de liberdade religiosa e de
pensamento. Nesse cenário humanista e liberal, nasceu um projeto de
desenvolvimento urbano que se tornaria a marca registrada da cidade holandesa:
a construção do cinturão de canais.
A população de Amsterdã aumentava
em escala extraordinária e a cidade crescia desgovernada para acompanhar o boom
demográfico. Em 1585, havia ali 30 mil habitantes. Um século depois, o número
chegaria aos 200 mil. Subúrbios ilegais brotavam nos entornos da muralha que
cercava a cidade, um perigo para a segurança local, Planejar o espaço urbano não
era luxo de cidade rica: era questão de sobrevivência. O modelo de canais
dispostos em semicírculo foi, na verdade, uma solução óbvia para uma cidade que
se formou à beira d’água e sempre se viu às voltas com soluções para conviver e
prosperar nessa condição. Como descreve [...] Fred Feddes [...]: “A água não
foi nem uma escolha nem uma virtude para os moradores. Ela estava lá desde o
começo”.
Um ditado popular dizia que “Deus
criou o mundo, mas os holandeses criaram a Holanda”. Amsterdã começou a ser
erguida por volta do ano 1000 por colonizadores que chegaram à região então
conhecida como Amstelland, uma área pantanosa, com um grande lago e alguns
rios. Na época, valas de 1 m
de largura eram cavadas no solo ensopado para drená-lo, padrão que ainda hoje
pode ser visto em pontos da cidade, como os canais do bairro de Jordaan. Por
volta de 1265, diques foram reforçadas para a construção de uma barragem – a “Dam”
do nome da cidade – no Amstel, rio que a corta e foi tão moldado pelo homem ao
longo da história, que é considerado por alguns como seu primeiro canal. Entre
1428 e 1450, escavou-se o antigo Stedegracht, que passou a delimitar a área da
cidade e funcionava como fosso de proteção.
Vias aquáticas também eram
cavadas para escoar as mercadorias do porto para a cidade – a vocação de
Amsterdã para o comércio se manifestou desde cedo e o motivo para isso foi
bastante prático. “Os Países Baixos como um todo não têm recursos naturais
importantes. A terra é muito pantanosa para se cultivarem grãos e o clima não é
excepcional”, afirma Kees Zandvliet, professor de História da Universidade de
Amsterdã e chefe de pesquisas, exposições e educação do Museu de Amsterdã. Some
a isso o fato de a cidade estar localizada em uma estrutura de delta, que
facilita a circulação de navios, num ponto privilegiado da Europa, no Mar Báltico
e próximo a países como França, Inglaterra e Alemanha. Quando a cidade crescia,
uma nova faixa de terra era adicionada à sua área e acrescentava-se também uma
de água, em forma de canal. A tecnologia para essas obras? “Sempre a boa e
velha força humana”, diz Zandvliet. “Eram pessoas com pás, jogando a lama para
o lado ou recolhendo-a em um barco.”
Foi dessa forma que Amsterdã
cresceu até as últimas décadas do século XVI, quando o fluxo populacional se intensificou,
abarrotando a cidade e também áreas fora da muralha. A Trégua dos Doze Anos,
entre 1609-1621, que interrompeu a Guerra dos Oitenta Anos contra os espanhóis,
foi a oportunidade para ampliar as fortificações, expandir o centro,
regularizar áreas ilegais e aumentar o porto da cidade. “A história mostra que
os canais não eram populares na época”, afirma Feddes. “Eles eram uma
necessidade, precisavam estar ali.”
Para a cidade, dinheiro e mão de
obra não eram problemas. Em 1610, um projeto inicial foi encomendado pelo
Conselho da cidade a Hendrick Jacobsz Staets. Como seus desenhos originais
desapareceram, não se sabe se a ideia da estrutura em semicírculo foi dele. O
que se sabe é que Maurício de Nassau (o mesmo personagem da invasão holandesa
em Pernambuco) foi consultado. Hoje, os historiadores acreditam que a expansão
deu-se em etapas, e os canais paralelos e concêntricos Herengracht (em português,
“Canal dos Senhores”), Keizergracht (“Canal do Imperador”) e Prinsengracht (“Canal
do Príncipe”), de 1613, foram seu ponto alto. Em 1620, eles foram prolongados
até o Rio Amstel e deram o formato atual da cidade, metade de um círculo no
qual o diâmetro maior marca o encontro com as águas do mar.
The bend in the Herengracht, Amsterdam. Gerrit Adriaensz
“Amsterdã não era uma cidade
nova, e durante a expansão foi preciso trabalhar com o que já havia ali. A água
foi usada no projeto”, diz Emma van Oudheusden, do museu Het Grachtenhuis, em
Amsterdã, que trata da história dos canais. “Seria muito mais caro, por
exemplo, construir ruas ou bulevares.”
Maior do que qualquer outro
projeto urbanístico holandês da época, a construção não foi um mar de rosas. Quem
morava no local foi pressionado a se mudar, levando junto sua casa de madeira. “A
expansão em larga escala significou segregação social: os ricos passaram a
viver ao longo dos canais e os trabalhadores, nas pequenas ruas abertas para
servir de conexão e pontos de comércio”, diz Feddes. Há histórias de membros do
Conselho da cidade que adquiriam os terrenos por preços baixíssimos para
revender à prefeitura – e isso na era crime. “A cidade era governada pelos
calvinistas”, diz Zandvliet. “De manhã, eles faziam negócios e, à tarde, se
reuniam na prefeitura para decidir o que era melhor para Amsterdã.”
Curiosamente, pouco se sabe sobre
a obra em si. Os canais foram cavados ao mesmo tempo, a partir do Lago IJ, em
direção ao sul da cidade. A areia retirada era usada para tornar a área ao seu
redor mais alta e protegida da água. Não há registros de quantos trabalhadores
colocaram a mão na massa. “Analisei uma série de arquivos em busca de imagens
da construção e nada encontrei, mas deveria haver milhares de pessoas
trabalhando”, diz Feddes.
Próximo do centro, o Herengracht
era o canal mais luxuoso. Junto com o Keizersgracht, o canal central que só não
virou um bulevar nos moldes do que havia em Haia por causa do alto custo, foi
concebido como área residencial. Nenhum dos dois recebia o tráfego de barcos
com mercadorias do porto – só eram usados para transporte de pessoas. O
Prinsengracht, o mais externo dos três, concentrava residências, mercados, comércio
e armazéns e era o único com conexão direta para o IJ.
Os terrenos de frente para a água
foram divididos em longas faixas e vendidos para a construção de casas – que seguiam
regras específicas. “A altura e a área máxima eram predeterminadas”, diz Emma. “Nos
fundos, não era permitido construir e os espaços eram ocupados por jardins.”
O Ano do Desastre (1672), quando
a Holanda sofreu ataques da Inglaterra, de estados germânicos e da França,
mudou os rumos do projeto. Os terrenos que faltavam para completar o semicírculo
foram vendidos quase de graça ou viraram parques.
Os séculos seguintes foram de
vacas magras, em especial depois da invasão francesa, que durou até 1813. Por
isso, no fim dos anos 1800 teve início um movimento para se fecharem muitos
canais. Tratava-se de uma questão de saúde pública. Sem sistema de esgoto, que
só viria em 1900, tudo acabava na água.
A situação, que nunca foi boa (o
terreno plano e a divisão dos canais tornavam a circulação da água lenta),
chegou a um ponto desastroso com uma epidemia de cólera no começo do século XX.
Cobrir os canais era visto como sinal de progresso. Mais ruas significava
espaço para os carros, que ganhavam importância no transporte. “No século XIX,
o governo fez de tudo para a cidade voltar a ser um importante centro econômico”,
diz Emma. “As pessoas não viam mais beleza nos canais”. Quando pareciam
destinados aos livros de história, uma mudança de mentalidade tomou conta de
Amsterdã no início do século XX. Turistas eram atraídos para a cidade construída
sobre a água. A Europa vivia um momento de resgate de suas heranças e a cidade
dos canais era um de seus cartões-postais mais preciosos, exóticos e raros.
Julia Moióli. Caminhos da água.
In: Revista Aventuras na História.
Edição 121, agosto 2013. p. 50-55.
NOTA: O texto "Amsterdã, 1600" não representa, necessariamente, o pensamento deste
blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do
conhecimento histórico.
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