São Paulo (Gazo), 1924, Tarsila do Amaral
A resistência à moradia coletiva, discriminada pelos discursos oficiais como sinônimo de todas as desgraças sanitárias presentes nas capitais brasileiras desde o Império, foi aos poucos arrefecendo diante da novidade constituída pelos apartamentos, inicialmente dirigidos aos segmentos mais abastados das grandes cidades. O receio de decair socialmente, advindo do desprezo para com as coabitações, foi vencido com a adoção de acabamentos custosos utilizados nos revestimentos externos e nas áreas internas de circulação dos edifícios. Justificava-se, assim, o apelo da denominação dos primeiros edifícios "palacetes", palavra consagrada, capaz de atenuar hesitações ou preconceitos.
Em São Paulo, os edifícios de apartamentos foram ocupando muitos dos bairros que eram abandonados pelas elites, aproveitando os grandes lotes, a arborização das ruas ou o prestígio, empanado, dos antigos bairros elegantes. Os "palacetes" foram erguidos diretamente nas calçadas, como nas capitais europeias oitocentistas, padrão que entraria pela década de 30. Os bairros de Santa Ifigênia, mas sobretudo Vila Buarque e Santa Cecília, são regiões que testemunham o primeiro modelo de verticalização, o qual guarda na ausência de recuos, nas portarias com acabamentos luxuosos e no próprio gabarito de sete ou oito andares a referência direta às experiências de edificação das cidades europeias.
Mas as características de privacidade e isolamento experimentadas nos bairros de palacetes e nos "jardins" acabariam se repetindo na verticalização da moradia. Dispositivos da legislação paulistana exigiram, já em 1937, que os edifícios erguidos nos bairros residenciais privilegiados guardassem recuos laterais e frontais. Isso assegurou a insolação e ventilação aos apartamentos e ao interior dos quarteirões, ao mesmo tempo que se repetia o afastamento entre os espaços público e privado, inseridos naqueles bairros quando abrigavam os palacetes. Higienópolis é o exemplo mais consistente de substituição das casas por edifícios de apartamentos dentro das exigências de 1937, num paradigma do modelo que se reproduziria em quase todos os bairros que não encontravam limites ao adensamento, como aqueles da Companhia City. As pressões por moradia, que permaneciam nas bordas da mancha dos bairros de elite, deveriam se afastadas o quanto possível das áreas centrais, a fim de evitar o encortiçamento dos antigos sobrados e palacetes - e a desvalorização definitiva dos bairros já "decadentes". O Plano de Avenidas, sugerido para São Paulo pelo engenheiro e depois prefeito Prestes Maia, e que foi implementado ao longo das décadas seguintes, coincidiu com a necessidade de preservar as vizinhanças dos bairros privilegiados, mediante o redirecionamento do crescimento daqueles populares.
Prestes Maia preconizou a abertura de grandes artérias radiais que partiam para os bairros, enfeixadas em torno de uma avenida perimetral à área central. A execução de seu projeto, iniciada a partir de 1938, quando ele já era prefeito de São Paulo. garantiu acesso rápido aos arrabaldes, viabilizando o crescimento atabalhoado e especulativo gerado pela venda de lotes populares, destinados a aluguel ou autoconstrução. A verticalização foi também facilitada, seja por meio da ampliação da altura total dos edifícios, seja por meio de novas vias públicas implantadas pelo projeto de Prestes Maia, que deveriam receber o incremento do fluxo gerado nos bairros adensados horizontal ou verticalmente.
MARINS, Paulo César Garcez. "Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das grandes metrópoles brasileiras." In: SEVCENKO, Nicolau (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 3.
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